segunda-feira, 16 de setembro de 2013

(Carlota Joaquina) "A Incompreendida"

Da Série Carlota Joaquina.



A incompreendida

 Carlota Joaquina de Bourbon e Bragança, mulher de Dom João VI, continua uma personagem pouco conhecida da nossa história. A exposição na mídia ajudou muito a popularizá-la, mas pouquíssimo compreendê-la. Nas duas produções, os autores reproduzem a imagem da princesa do Brasil como uma mulher muito feia, ambiciosa, libidinosa, adúltera e que, sobretudo, odiava o país. Mas volumosos conjuntos de cartas de Carlota Joaquina, guardados no arquivo histórico do Museu Imperial em Petrópolis (RJ) e nos arquivos portugueses e espanhóis, contam uma versão bem diferente.

Como parte de um acordo entre as coroas ibéricas, a espanhola Carlota foi enviada aos 10 anos a Lisboa para casar com o infante português Dom João. Com o marido introvertido e depressivo ausente do centro de poder, recolhido nos palácios de Mafra e Vila Viçosa, Carlota passou a ter um papel político relevante na adolescência. Defensora do absolutismo, numa época em que crescia a influência dos liberais ingleses na corte, ela negociou o apoio da França e da Espanha para assumir o poder em Portugal.

Mas,  o agravamento da crise política na Europa e a iminente invasão francesa – que obrigou a família real fugir de Portugal – cancelaram suas ambições políticas. Em 1807, a viagem para o Brasil significou para Carlota o exílio. Longe dos pais, dos amigos e partidários políticos, ela não via mesmo muitos motivos para gostar do Brasil.

Vivendo no Rio de Janeiro, Carlota recebeu a notícia da invasão da Espanha pelas tropas de Napoleão e a prisão de toda a sua família. Em 1808, com apoio do almirante inglês Sidney Smith e membros da elite criolla de Buenos Aires, Carlota pleiteia a regência da monarquia espanhola, para liderar a oposição à invasão francesa e governar o império espanhol, estabelecendo a sede da monarquia em Buenos Aires, capital do vice-reino do Rio da Prata
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Em geral, os historiadores consideram essa interferência política fruto de sua ambição pessoal e do desejo desenfreado de poder. Entretanto, a correspondência entre ela e os intelectuais portenhos, que se tornaram defensores do “carlotismo”, mostra o contrário. Em 1809, Saturnino Rodrigues Peña, escritor e político portenho escreveu: “A senhora dona Carlota, princesa de Portugal e do Brasil e infanta da Espanha, tem uma educação ilustrada e os sentimentos mais heróicos. É impossível ouvir falar dela sem amá-la; não possui uma só idéia que não seja generosa: em uma palavra parece prodigiosa a vinda da digna princesa, sua educação, suas intenções e demais extraordinárias circunstancias que a adornam; em cuja virtude não duvido, nem V.S. deve duvidar que essa seja a heroína que necessitamos.

As cartas mostram que a relação com o marido, outra fonte de polêmicas, também tinha momentos de carinho. Em bilhete enviado à mulher, em 1813, dom João se expressa de forma afetuosa: “Meu amor, estimei infinito a tua carta por ter a certeza de que estás boa e nossos filhos. Eu passo bem e nossos filhos e neto. Quanto ao que me dizes a respeito do furto dos pretos, aprovo o que fizeste, e adeus meu amor.”

Por que, então, a historiografia brasileira criou essa caricatura menor para representar Carlota Joaquina? Ao invadir a esfera pública, espaço proibido ao sexo feminino na época, Carlota perdeu todos os predicados inerentes às mulheres, como, feminilidade, beleza, recato e bondade. Eis o motivo pelo qual muitos artistas ao representá-la, fiéis a esses estereótipos, retratam feições marcadamente masculinas.


Além disso, há o componente ideológico. No século 19, as interpretações do passado tornaram-se ferramentas políticas na criação das identidades nacionais nos países que surgiam. No Brasil, não foi diferente. Carlota Joaquina, uma rainha portuguesa que manteve a identidade espanhola, que foi contra a vinda da família real para o Brasil, que declarou sua alegria com a volta a Portugal, que se recusou a jurar a Constituição portuguesa e defendeu o absolutismo até o fim, certamente não servia para ocupar o pódio dos personagens dignos da memória nacional brasileira.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Ditaduras latinas

O golpe chileno na vida de três vítimas de Pinochet

O golpe que derrubou o governo socialista de Salvador Allende completa 40 anos sem trazer respostas para a morte do poeta Pablo Neruda, do músico Víctor Jara e do general Carlos Prats.

As primeiras notícias de que algo grande acontecia vieram antes de o Sol nascer. Falava-se que a Marinha havia se insurgido em Valparaíso, mas que o Exército seguia leal ao presidente. A verdade é que o dia 11 de setembro de 1973 começou sem que se soubesse como tudo ia acabar - uma dúvida que não existia mais na hora do almoço. O levante era da totalidade das Forças Armadas, encabeçado pelo general Augusto Pinochet. Sua subida ao poder teve momentos violentos, com bombardeio ao palácio do governo e o suicídio do presidente do Chile Salvador Allende.

"Depois daquele dia, quando você saía na rua, encontrava um país diferente. As pessoas estavam silenciosas, sem saber em quem confiar, pois o amigo de ontem podia se revelar um espião", diz o poeta Jorge Montealegre. Ele tinha 18 anos quando Allende foi deposto. Duas semanas após o golpe, Montealegre tornou-se um dos milhares de chilenos enviados à prisão política. A repressão torturou mais de 40 mil pessoas, deixando um rastro de pelo menos 3 065 desaparecidos e mortos já reconhecidos pelas investigações realizadas desde os anos 90.


Da esquerda para a direita: o poeta Pablo Neruda, o músico Víctor Jara e o general Carlos Prats.

Muitos pereceram em condições misteriosas. Alguns personagens mortos eram muito famosos: o poeta Pablo Neruda, o músico Víctor Jara e o general Carlos Prats. Cada um deles havia dado sua contribuição para Allende e os três morreram pouco tempo após o golpe. Não se sabe o que matou Neruda. Não se sabe quem matou Jara. Os familiares de Prats até conhecem o culpado, mas convivem com a impunidade dos responsáveis. Seus casos continuam a ser investigados - parte do triste fim de uma das democracias mais sólidas da América do Sul.

Oásis democrático

Desde 1932, o Chile realizava eleições sequenciais - contrastando com os instáveis vizinhos com seus caudilhos - e costumava atrair asilados a Santiago, incluindo brasileiros, como Fernando Henrique Cardoso. Em setembro de 1970, os chilenos testaram os limites de seu sistema eleitoral: em plena Guerra Fria, o médico e senador socialista Salvador Allende venceu o pleito com um programa que buscava uma transição inédita ao socialismo - sem pegar em armas e usando leis já existentes para fazer as reformas. Allende tornou-se o primeiro presidente marxista eleito no mundo, à frente da Unidade Popular (UP), coligação liderada pelos socialistas e comunistas. Temendo uma nova Cuba, os EUA não tardaram a agir. A alternativa mais rápida era dar suporte a um golpe. A UP tinha um cenário interno hostil. Numa briga de três candidatos, a vitória veio sem maioria absoluta, com 36,6% do eleitorado. Sem segundo turno, o resultado precisava ser confirmado pelo Legislativo. Às vésperas da reunião dos congressistas, um grupo radical de direita assassinou o comandante do Exército, general René Schneider, que havia prometido respeitar o resultado das urnas. O atentado não impediu a posse, mas sinalizou o que viria.

Henry Kissinger, secretário de Estado norte-americano, perguntou: "Por que temos que ver um país virar marxista pela irresponsabilidade de seu povo?" Chu En-Lai, o primeiro-ministro chinês, alertou: "Cuidado, vocês estão indo muito rápido". As frases ajudam a entender o processo que levou à derrubada de Allende na metade do seu mandato de seis anos: por um lado, os boicotes estrangeiros; por outro, os passos grandes demais nas reformas econômicas.

A gestão da UP começou em novembro de 1970 e, antes de o ano acabar, já havia expropriado sua primeira fábrica. Depois, acelerou-se a reforma agrária. Nos dois casos foi usada a legislação existente, mas com um rigor nunca visto. Até Fidel Castro desembarcou no Chile, em sua primeira visita a outro país do continente após Cuba se declarar socialista. A maior vitória do governo veio em julho de 1971: mesmo dominado pela oposição, o Congresso aprovou por unanimidade a estatização das minas de cobre, até ali em mãos de empresas norte-americanas.

Logo as reformas saíram do controle. Sabendo que o governo não os reprimiria, camponeses sem-terra ocuparam fazendas que não se enquadravam na lei de reforma agrária, e operários fizeram o mesmo em fábricas cuja expropriação não se justificava legalmente. "Essa revolução vinda de baixo com frequência coincidia com, ou complementava, mas cada vez mais divergia da revolução legalista e modulada vinda de cima", escreveu o historiador norte-americano Peter Winn em A Revolução Chilena.

Além disso, não havia reservas suficientes para sustentar tantas estatizações. O problema se agravou quando os norte-americanos fizeram lobby para derrubar o valor do cobre e seus bancos cortaram o crédito ao Chile. O governo imprimiu mais dinheiro. Como se não bastasse, uma greve de caminhoneiros piorou a escassez de alimentos e a inflação. A partir de abril de 1973, os preços subiam, em média, mais de 1% ao dia.

A carestia pressionava mais o bolso da classe média. Nas periferias, o governo conseguia distribuir alimentos a preço tabelado. Sem a classe média, a UP perdeu apoio de um setor volátil e estratégico para se viabilizar politicamente. Até os partidos moderados de oposição fecharam os canais de diá-logo. Querendo insuflar os militares, grupos de ultradireita deram início a atentados terroristas. Estava pavimentado o caminho para o golpe.

No final de 1972, com o país já em crise, um episódio entrou para a história do Chile e reuniu três figuras marcantes. No Estádio Nacional, que na ditadura viraria campo de prisioneiros, Pablo Neruda foi recebido em triunfo em sua primeira aparição pública após ganhar o Nobel de Literatura. A organização do evento esteve a cargo de Víctor Jara. Quem discursou em nome do governo foi o general Carlos Prats. Neruda regressava ao Chile após dois anos como embaixador na França. Apesar de ser mais conhecido pela literatura, era um veterano na diplomacia e na política: em 1939, havia sido responsável direto por trazer a Santiago mais de 2 mil refugiados da Guerra Civil Espanhola. Na década seguinte, virou senador pelo Partido Comunista.

Esse passado mudou o perfil das arquibancadas naquela tarde de dezembro. Embora Neruda estivesse acima dos partidos, o público visto no estádio foi menor que o esperado. Na época, a discórdia aparecia até dentro da UP: Allende e os comunistas pediam calma e buscavam diálogo com a oposição, mas os socialistas defendiam a necessidade de acelerar o processo, mesmo se isso atropelasse as leis. Neruda fez uma leitura acurada do momento. Citando o caso espanhol, discursou sobre o horror de uma guerra civil, que temia para seu país. Enquanto falava, era observado atentamente por Prats, que pouco antes havia feito seu pronunciamento.

O general e o poeta

Allende não estava lá. O evento coincidiu com sua visita à ONU, onde denunciou os boicotes sofridos pelo Chile: "Somos vítimas de ações quase imperceptíveis, disfarçadas com frases e declarações que exaltam o respeito à soberania e à dignidade de nosso país. Mas nós conhecemos na própria carne a enorme distância que há entre essas declarações e a realidade".

Carlos Prats González assumira o comando do Exército após o atentado contra René Schneider. Assim como o antecessor, pregava a defesa do governo democrático: "As Forças Armadas não são uma opção ao poder enquanto existir um regime legal", afirmava. Prats tornou-se tão importante para repelir tendências golpistas que, durante a greve dos caminhoneiros de outubro de 1972, foi nomeado ministro do Interior - cargo, na prática, equivalente ao de vice-presidente.

O general cumpria essa função no final do ano, quando Allende viajou e Neruda voltou ao Chile. A presença de Prats tranquilizava os chilenos, em especial os da UP, mas no Estádio Nacional ainda houve lugar para o medo. Entre as apresentações previstas para a tarde estava a execução da 1812 Overture, composição de Tchaikovsky cuja partitura original inclui tiros de canhão. Nos camarins, os artistas que não conheciam esse detalhe se assustaram com os disparos. Anos depois, o bailarino Patricio Bunster afirmou: "Todos começaram a gritar e chorar. Acreditávamos que vinha o golpe".

O Músico

Os detalhes do evento ficaram a cargo de Víctor Jara. Filho de camponeses, havia se mudado para Santiago ainda menino e, na juventude, entrou na faculdade de teatro. Jara começou a tocar violão e cantar, atividade que ofuscou sua carreira como diretor: nos anos 60 já era um dos cantores mais famosos do Chile - e o mais polêmico. Comunista, esteve na comissão que criou o hino de campanha de Allende.

Em 11 de setembro de 1973, Jara estava na Universidade Técnica do Estado (UTE), onde trabalhava. Allende visitaria o campus naquela manhã e pretendia convocar um plebiscito para decidir se continuava ou não seu mandato. A notícia antecipou o levante militar - o golpe seria menos aceitável pela opinião pública depois do anúncio de Allende. Foi das janelas da UTE que Jara soube que não haveria plebiscito: viu os caças da Força Aérea dispararem mísseis contra o palácio de La Moneda, a sede do governo.

No fim de agosto, apenas 18 dias antes, Prats havia renunciado ao comando do Exército - seu sucessor foi Augusto Pinochet, cuja lealdade nunca havia sido questionada, embora já conspirasse em segredo. No dia 11, a Marinha se insurgiu antes das 6h da amanhã, e o mito de um Exército leal seguiu até perto das 9h, quando as rádios emitiram um comunicado exigindo a renúncia do presidente. Allende recusou-se a renunciar. Em seu último pronunciamento pelo rádio, declarou-se traído e pediu que os chilenos não arriscassem a vida tentando resistir ao golpe. Não querendo cair vivo nas mãos dos militares, suicidou-se após ordenar a rendição aos seus colegas na defesa do palácio. Com a cidade sitiada, a UTE permaneceu sob cerco do Exército, sem que ninguém pudesse sair. Na manhã seguinte, quem se encontrava no campus foi preso e levado a um ginásio próximo. Jara estava entre eles.

A morte de Jara virou lenda. Na versão mais conhecida, ele teria sido fuzilado enquanto cantava o hino da UP, no centro da quadra. O músico na verdade foi levado aos vestiários, longe dos outros prisioneiros, e não voltou vivo. Seu corpo apareceu na manhã de 16 de setembro, com 44 furos de bala. Não seria a única execução sumária da ditadura, mas o fato de acontecer contra um músico assustou a todos. "A quem ocorreria a ideia de matar um cantor? Isso só servia para demonstrar até onde a ditadura estava disposta a ir", diz Eduardo Carrasco, do Quilapayún, banda que tocou com Jara nos anos 60.

Mistérios

Até hoje, as investigações não conseguiram determinar quem deu a ordem de executar Jara. Só em dezembro de 2012, 40 anos depois, a Justiça exigiu a prisão preventiva de oito oficiais envolvidos no crime. Ninguém foi condenado e o inquérito segue aberto. Neruda morreu no dia 23, em um hospital de Santiago. A notícia da morte apareceu no jornal El Mercurio ao lado de uma foto de soldados queimando livros "subversivos". O relato oficial falava em complicações de um câncer na próstata. Há pouco tempo, voltou à tona a hipótese de envenenamento - segundo seu chofer, Manuel Araya, o poeta teria piorado após receber uma injeção. Em abril de 2013, seu corpo foi exumado. As conclusões ainda não foram apresentadas.

Prats morreu em setembro de 1974, num atentado a bomba em Buenos Aires, onde se exilou. A emboscada foi armada pelo ex-agente da CIA Michael Townley, que depois mataria, em Washington, o ex-ministro de Defesa de Allende, Orlando Letelier. Ficou menos de seis anos preso nos EUA. Por contribuir com as investigações, nunca foi extraditado à Argentina para ser julgado pela morte de Prats.

Os acontecimentos de 11 de setembro de 1973

02:30 - Allende encerra reunião com assessores, em que se discutiu seu pronunciamento do dia seguinte. Está marcado para a manhã do dia 11 o anúncio de um plebiscito pela continuidade de seu governo - fato que fez os militares apressarem o golpe, previsto só para o dia 14.

03:00 - Uma rádio universitária, ligada ao governo, é invadida e destruída por militares para não transmitir mensagens contrárias ao golpe na manhã seguinte.

05:30 - Raúl Montero, comandante da Marinha que apoiava o governo, é mantido em prisão domiciliar pelos golpistas. O almirante Toribio Merino se proclama novo chefe da Armada. Começa o levante em Valparaíso.

06:15 - Allende é acordado por um telefonema informando dos fatos. Tenta contato com os três comandantes das Forças Armadas, sem sucesso.

07:35 - O presidente chega ao palácio de La Moneda. Quase na mesma hora, Augusto Pinochet desembarca no quartel de telecomunicações do Exército, de onde coordenará as ações do golpe.

07:55 - Allende faz seu primeiro pronunciamento do dia, pela Rádio Corporación: "Até o momento, não houve nenhum movimento anormal de tropas em Santiago", diz, baseado nas informações que possui. O presidente ainda tem a esperança de que o levante esteja restrito à Marinha.

08:15 - No rádio, Allende manifesta confiança nos "soldados da Pátria". Acreditando na lealdade de Pinochet, comenta fora do ar sobre o general: "Pobre Augusto, deve estar preso".

08:30 - Rádios de oposição transmitem o comunicado da Junta Militar, assinado por Pinochet e outros comandantes, contra a "gravíssima crise econômica, social e moral que está destruindo o país".

08:45 - Allende fala pela terceira vez na Rádio Corporación. Já sabendo que o golpe é insuperável, afirma: "Só me crivando de balas poderão impedir a vontade que é fazer cumprir o programa do povo".

09:05 - Um avião é oferecido para tirar Allende do país. Ele recusa. Em 1985, vaza a gravação das conversas de Pinochet com os comandantes que sinaliza que a promessa podia ser uma armadilha: "Está mantida a oferta... e o avião cai durante o voo".

09:10 - Allende fala pela última vez ao povo do Chile. As torres da Rádio Corporación já haviam sido bombardeadas pela Força Aérea e o áudio vem pela Rádio Magallanes. Sua voz está tranquila, mas também tem tom de despedida. O presidente pede que seus correligionários não arrisquem a vida nas ruas e garante: "Não vou renunciar. Pagarei com a minha vida a lealdade do povo".

09:30 - Em novo telefonema para oferecer um avião a Allende, ouve-se a voz do almirante Patricio Carvajal: "Temos que matá-los como ratos. Que não sobre nenhum rastro deles, em especial de Allende".

10:00 - O palácio de La Moneda é cercado por tanques de guerra. Vem o ultimato: o palácio deve ser evacuado até às 11h ou sofrerá bombardeio.

10:10 - Allende reúne os colaboradores no Salão Toesca e pede que não haja sacrifícios inúteis: ordena a retirada das mulheres e dos homens que não saibam usar armas.

11:20 - Em outro ponto de Santiago, a residência presidencial é bombardeada. Lá estava a primeira-dama Hortensia Bussi, que consegue escapar.

11:30 - A Junta Militar decreta estado de sítio.

11:52 - Com quase uma hora de atraso, começa o bombardeio de La Moneda. São disparadas ao menos 79 bombas e 57 mil tiros de fuzil.

12:15 - O bombardeio é interrompido. Durante o ataque, o jornalista Augusto Olivares, diretor da televisão estatal, comete suicídio. É a primeira morte no palácio.

12:50 - Reunidos dentro do palácio, os defensores discutem o que fazer. Decide-se enviar três homens para negociar os termos da rendição.

13:30 - Allende ordena que os demais defensores do palácio saiam pela porta que dá na Rua Morandé. Diz que será o último da fila. Enquanto os outros deixam La Moneda, porém, o presidente se retira para o Salão da Independência. Ali, usando um AK-47 que havia recebido de presente do presidente cubano Fidel Castro, Allende se suicida.

Cerca de 14h - Os militares anunciam que tomaram o palácio. Dos 56 prisioneiros, 24 sofreriam execuções sumárias ou desapareceriam nos dias seguintes ao golpe militar.


LIVRO

A Revolução Chilena, Peter Winn, Editora da Unesp, 2010.

"Muitas vozes"

"Muitas vozes" -  Análise da obra de Ferreira Gullar


 Esse livro representa uma ruptura temática dentro da biografia do escritor, diferenciando-se de grandes obras anteriores tais como "A Luta Corporal" (1954) e "Poema Sujo" (1976). Gullar sempre buscou novos caminhos para a poesia brasileira desde seus primeiros livros, tendo aberto espaço para a poesia concreta no país. Seu segundo trabalho, "A luta corporal" (1954), causou grande impacto no meio intelectual brasileiro por ter uma proposta gráfica muito inovadora para a época. Mais tarde o poeta iria romper com o concretismo e ajudar a criar o movimento neoconcretista, o qual também deixou de lado por volta da década de 1960. Assim, através de experiências diversas com a linguagem e o fazer poético, Gullar consegue firmar-se como um poeta de vanguarda dentro da literatura nacional.

Já em "Muitas Vozes" podemos ver uma poética mais madura. Nesta obra faz-se muito presente reflexões sobre a vida, a morte, memórias da infância, o silêncio e outros temas. Conforme o próprio escritor comentou, este é um livro em que a fúria presente em outras obras suas aparece mais amenizada e o tom geral do livro é de reflexão. O tema da morte, muito frequente no livro, pode ser reflexo das perdas enfrentadas pelo autor durante a década de 1990 – seu filho e sua primeira esposa haviam falecido nessa época. Porém, a morte não é vista com medo ou horror, mas sim como objeto de reflexão. Em contraste ao sentimento de dor e perda que o tema da morte traz, vê-se também a celebração da vida e do amor – Gullar havia encontrado um novo amor em sua segunda esposa, a poetisa Cláudia Ahimsa.

"Muitas Vozes" reúne  54 poemas divididos em quatro partes, sendo que a primeira não recebe nenhum título e as outras três são “Ao rés da fala”, “Poemas recentes” e “Poemas resgatados”. Ao contrário das outras partes, “Ao rés da fala” surpreende pelo ineditismo de alguns de seus temas. Nesta parte, Gullar trata de fatos marcantes em sua vida e chega a dedicar poemas a familiares seus, algo que ele jamais havia feito até então. Estão em “Ao rés da fala”, por exemplo, poemas que tratam de seu exílio no Chile e da morte de sua primeira esposa.

Por fim, convém ressaltar que após anos de experimentação literária e busca por novas formas de fazer poesia, Gullar volta a realizar em "Muitas Vozes" poemas metrificados e rimados – como pode-se notar mais fortemente na terceira parte do livro, “Poemas recentes”. Em seus livros anteriores, a maior preocupação era com a subversão da linguagem, buscando através da escrita “dizer o indizível”, como definiu o próprio escritor, e trazer em forma de poema a própria vida.

Já em "Muitas Vozes" a preocupação central de Ferreira Gullar parece ser a própria palavra e em diversos poemas ele apenas “escuta”, “observa” e “reflete” a vida. Assim, o título do livro pode ser compreendido como a reunião das “muitas vozes” que possuem a poesia de Gullar: as experiências com a poesia formal, o concretismo e neoconcretismo, as temáticas da morte, infância, vida e diversos outros aspectos da poesia do escritor estão todos presentes em "Muitas Vozes".

Poemas representativos
“Queda de Allende”
Nesse poema composto em três partes, Gullar volta a refletir sobre suas experiências no Chile. Na primeira parte do poema, o eu-lírico conta sobre o leite que comprou sem saber que nem chegaria a bebe-lo. Já na segunda parte ele fala que mesmo estando à caminho do movimento de resistência ao golpe político, entra na fila para comprar cigarro;. Por fim, na terceira parte o eu-lírico conta sobre os jovens que jogam futebol nos intervalos do tiroteio.

Ao contrário do sentimento de coragem ao defender o presidente Allende que se encontra no poema “Dois poemas chilenos” (do livro "Dentro da noite veloz"), aqui o eu-lírico se preocupa em garantir o sustento do dia-a-dia e observa os jovens que continuam sua vida sem se importar com os acontecimentos que os cercam. Assim, quem fala no poema é o homem comum, despido de qualquer ideologia ou mitificação política.

“Não-coisa”
Esse poema trata de um tema muito recorrente na poética de Ferreira Gullar que é a preocupação com o fazer-poético. Assim, esse é um poema metalinguístico, ou seja, que trata sobre o próprio ato de escrever poemas. Através de uma série de evocações sensoriais (olfato, visão, etc), o poeta chama a atenção para o fato de que um poema é um conjunto de palavras vazias e que só ganha sentido quando é preenchido pelas inúmeras vozes do “nós”. Essa pluralidade de vozes dentro de um poema também é motivo do poema “Muitas vozes”, que segue “Não-coisa”.

“That is the question”
Mais uma vez o poeta revisa um de seus poemas antigos. Aqui, Gullar reescreve “Dois e dois: quatro” (Dentro da noite veloz), um de seus poemas mais famosos. Em “Dois e dois: quatro” o clima é de mesmo diante das dificuldades deve-se lutar e seguir em frente, pois “a vida vale a pena”. Já em “That is the question” o poeta substitui a certeza matemática por uma pergunta que remete ao famoso “to be, or not to be: that is the question”, de Shakespeare, e reformulado por Oswald de Andrade no Brasil como “tupi or not tupi”. A certeza que se encontrava na ação política é substituída pela incerteza existencial e do próprio fazer literário. Aceitar ou detonar o poema significa aceitar ou negar a ilusão de que um texto é resultado da transformação de uma subjetividade (espaço íntimo onde o indivíduo se relaciona com o mundo social e externo). Tanto aceitando, quanto detonando o poema, ele estaria compactuando de alguma forma com a lógica burguesa contra a qual lutou em “Dois e dois: quatro”.

Comentário do professor
O professor Marcílio Lopes Couto, do Colégio Anglo, comenta que é importante ter em mente que Ferreira Gullar surge ligado à duas tendências: uma seria a poesia concreta e outra a temática social. Assim, sempre foi um destaque na obra do poeta o esforço de modernizar a linguagem poética e também o esforço de falar sobre a realidade brasileira. A obra "Muitas Vozes" pode ser vista como uma síntese de toda a poética de Gullar, estando presente os temas mais caros ao escritor e trabalhados de diversas formas e estilos.

Além disso, essa obra possui um caráter autobiográfico, onde Gullar trata sobre a infância, sexualidade, pessoas próximas à ele, familiares e outros temas íntimos numa tentativa de resgatar sua própria história. Porém, destaca o prof. Marcílio, ao falar de si próprio através e formas e conceitos estéticos variados, Gullar não abandona o outro e adquire um tom universal. Dessa forma, as “muitas vozes” pode significar também as diversas vozes que compõem o poema, além da do próprio escritor. Por fim, essas “vozes” também fazem referência ao próprio som, pois é um livro que trata muito sobre o barulho, o ruído, o som e, porque não, do silêncio.

Sobre Ferreira Gullar
José Ribamar Ferreira nasceu em 10 de setembro de 1930 em São Luís, Maranhão. Ao completar 18 anos, mudou seu nome para Gullar, uma adaptação do sobrenome de sua mãe, Goulart. Sobre a mudança de nome, Ferreira Gullar declarou que se tudo na vida é inventado, ele também inventaria seu nome.
Publicou seu primeiro livro, Um pouco acima do chão, em 1949, mas esta obra acabou sendo excluída de sua bibliografia oficial. No ano seguinte ganhou um concurso promovido pelo Jornal de Letras com o poema “O galo”. Em 1951, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como revisor na revista “O Cruzeiro”. Além dessa, trabalharia também em outras revistas e jornais.

Em 1954, publicou A luta corporal, chamando a atenção dos irmãos Campos e outros grandes nomes do movimento concretista. Dois anos depois, participa da I Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). Em 1959, publica o “Manifesto Neoconcreto” no “Suplemento Dominical” ao lado de Lygia Pape, Amilcar de Castro e outros.

Em 1964 filia-se ao Partido Comunista e funda o Grupo Opinião com Paulo Pontes e outros. Dois anos depois, a peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come ganha os prêmios Molière e Saci.
Ferreira Gullar é preso durante a ditadura militar em 1968 e parte para o exílio em 1971. Nessa época reside em Moscou, Lima e Buenos Aires, colaborando para o semanário “O Pasquim”. Em Buenos Aires escreve sua mais famosa obra, Poema Sujo, que foi publicada no Brasil em 1976 e serviu como um ato pela volta de Ferreira Gullar ao país. No ano seguinte, ele retorna ao Brasil. Desde então, o poeta publicou diversos outros livros e ganhou vários prêmios.


Suas principais obras são: "A luta corporal" (1954), "Dentro da noite veloz" (1975), "Poema sujo" (1976) e "Muitas vozes" (1999). Além dessas obras, Gullar publicou também contos, crônicas, peças de teatro e ensaios sobre arte e literatura.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Sabe qual foi o primeiro país a ter um exército oficial?



Os exércitos são mais antigos que o conceito de país e existem desde 2500 a.C., pelo menos. Os primeiros grupamentos organizados para defender territórios e atacar inimigos pertenciam a cidades-Estado da Suméria, no sul da Mesopotâmia - território que, hoje em dia, representa o Iraque e partes de Irã, Síria e Turquia. Com a expansão das civilizações na Mesopotâmia, o interesse em áreas estratégicas, como canais e terras produtivas, provocou disputas entre vizinhos. O ato de guerra passou a fazer parte das leis sumérias, com uma cidade-Estado neutra servindo de árbitra nas batalhas. Com as regras, surgiram alianças, dando origem a impérios que guerreavam com cidades estrangeiras. Civilizações da região, como acádios e babilônicos, começaram com exércitos de poucos milhares e expandiram territórios e forças militares aos poucos. Os primeiros soldados lutavam com lanças, machados e adagas, e os "tanques" da época eram carruagens, com um condutor e um guerreiro armado com dardo ou arco composto - feito com ossos, tendões ou feixes de madeira.