O golpe chileno na vida de três vítimas de Pinochet
O golpe que derrubou o governo socialista de Salvador
Allende completa 40 anos sem trazer respostas para a morte do poeta Pablo
Neruda, do músico Víctor Jara e do general Carlos Prats.
As primeiras notícias de que algo grande acontecia vieram
antes de o Sol nascer. Falava-se que a Marinha havia se insurgido em
Valparaíso, mas que o Exército seguia leal ao presidente. A verdade é que o dia
11 de setembro de 1973 começou sem que se soubesse como tudo ia acabar - uma
dúvida que não existia mais na hora do almoço. O levante era da totalidade das
Forças Armadas, encabeçado pelo general Augusto Pinochet. Sua subida ao poder
teve momentos violentos, com bombardeio ao palácio do governo e o suicídio do
presidente do Chile Salvador Allende.
"Depois daquele dia, quando você saía na rua,
encontrava um país diferente. As pessoas estavam silenciosas, sem saber em quem
confiar, pois o amigo de ontem podia se revelar um espião", diz o poeta
Jorge Montealegre. Ele tinha 18 anos quando Allende foi deposto. Duas semanas
após o golpe, Montealegre tornou-se um dos milhares de chilenos enviados à
prisão política. A repressão torturou mais de 40 mil pessoas, deixando um
rastro de pelo menos 3 065 desaparecidos e mortos já reconhecidos pelas
investigações realizadas desde os anos 90.
Da esquerda para a direita: o poeta Pablo Neruda, o
músico Víctor Jara e o general Carlos Prats.
Muitos pereceram em condições misteriosas. Alguns
personagens mortos eram muito famosos: o poeta Pablo Neruda, o músico Víctor
Jara e o general Carlos Prats. Cada um deles havia dado sua contribuição para
Allende e os três morreram pouco tempo após o golpe. Não se sabe o que matou
Neruda. Não se sabe quem matou Jara. Os familiares de Prats até conhecem o
culpado, mas convivem com a impunidade dos responsáveis. Seus casos continuam a
ser investigados - parte do triste fim de uma das democracias mais sólidas da
América do Sul.
Oásis democrático
Desde 1932, o Chile realizava eleições sequenciais -
contrastando com os instáveis vizinhos com seus caudilhos - e costumava atrair
asilados a Santiago, incluindo brasileiros, como Fernando Henrique Cardoso. Em
setembro de 1970, os chilenos testaram os limites de seu sistema eleitoral: em
plena Guerra Fria, o médico e senador socialista Salvador Allende venceu o
pleito com um programa que buscava uma transição inédita ao socialismo - sem
pegar em armas e usando leis já existentes para fazer as reformas. Allende
tornou-se o primeiro presidente marxista eleito no mundo, à frente da Unidade
Popular (UP), coligação liderada pelos socialistas e comunistas. Temendo uma
nova Cuba, os EUA não tardaram a agir. A alternativa mais rápida era dar
suporte a um golpe. A UP tinha um cenário interno hostil. Numa briga de três
candidatos, a vitória veio sem maioria absoluta, com 36,6% do eleitorado. Sem
segundo turno, o resultado precisava ser confirmado pelo Legislativo. Às
vésperas da reunião dos congressistas, um grupo radical de direita assassinou o
comandante do Exército, general René Schneider, que havia prometido respeitar o
resultado das urnas. O atentado não impediu a posse, mas sinalizou o que viria.
Henry Kissinger, secretário de Estado norte-americano,
perguntou: "Por que temos que ver um país virar marxista pela
irresponsabilidade de seu povo?" Chu En-Lai, o primeiro-ministro chinês,
alertou: "Cuidado, vocês estão indo muito rápido". As frases ajudam a
entender o processo que levou à derrubada de Allende na metade do seu mandato
de seis anos: por um lado, os boicotes estrangeiros; por outro, os passos
grandes demais nas reformas econômicas.
A gestão da UP começou em novembro de 1970 e, antes de o
ano acabar, já havia expropriado sua primeira fábrica. Depois, acelerou-se a
reforma agrária. Nos dois casos foi usada a legislação existente, mas com um
rigor nunca visto. Até Fidel Castro desembarcou no Chile, em sua primeira
visita a outro país do continente após Cuba se declarar socialista. A maior
vitória do governo veio em julho de 1971: mesmo dominado pela oposição, o
Congresso aprovou por unanimidade a estatização das minas de cobre, até ali em
mãos de empresas norte-americanas.
Logo as reformas saíram do controle. Sabendo que o
governo não os reprimiria, camponeses sem-terra ocuparam fazendas que não se
enquadravam na lei de reforma agrária, e operários fizeram o mesmo em fábricas
cuja expropriação não se justificava legalmente. "Essa revolução vinda de
baixo com frequência coincidia com, ou complementava, mas cada vez mais
divergia da revolução legalista e modulada vinda de cima", escreveu o
historiador norte-americano Peter Winn em A Revolução Chilena.
Além disso, não havia reservas suficientes para sustentar
tantas estatizações. O problema se agravou quando os norte-americanos fizeram
lobby para derrubar o valor do cobre e seus bancos cortaram o crédito ao Chile.
O governo imprimiu mais dinheiro. Como se não bastasse, uma greve de
caminhoneiros piorou a escassez de alimentos e a inflação. A partir de abril de
1973, os preços subiam, em média, mais de 1% ao dia.
A carestia pressionava mais o bolso da classe média. Nas
periferias, o governo conseguia distribuir alimentos a preço tabelado. Sem a
classe média, a UP perdeu apoio de um setor volátil e estratégico para se
viabilizar politicamente. Até os partidos moderados de oposição fecharam os
canais de diá-logo. Querendo insuflar os militares, grupos de ultradireita
deram início a atentados terroristas. Estava pavimentado o caminho para o
golpe.
No final de 1972, com o país já em crise, um episódio
entrou para a história do Chile e reuniu três figuras marcantes. No Estádio
Nacional, que na ditadura viraria campo de prisioneiros, Pablo Neruda foi
recebido em triunfo em sua primeira aparição pública após ganhar o Nobel de
Literatura. A organização do evento esteve a cargo de Víctor Jara. Quem
discursou em nome do governo foi o general Carlos Prats. Neruda regressava ao
Chile após dois anos como embaixador na França. Apesar de ser mais conhecido
pela literatura, era um veterano na diplomacia e na política: em 1939, havia
sido responsável direto por trazer a Santiago mais de 2 mil refugiados da Guerra
Civil Espanhola. Na década seguinte, virou senador pelo Partido Comunista.
Esse passado mudou o perfil das arquibancadas naquela
tarde de dezembro. Embora Neruda estivesse acima dos partidos, o público visto
no estádio foi menor que o esperado. Na época, a discórdia aparecia até dentro
da UP: Allende e os comunistas pediam calma e buscavam diálogo com a oposição,
mas os socialistas defendiam a necessidade de acelerar o processo, mesmo se
isso atropelasse as leis. Neruda fez uma leitura acurada do momento. Citando o
caso espanhol, discursou sobre o horror de uma guerra civil, que temia para seu
país. Enquanto falava, era observado atentamente por Prats, que pouco antes
havia feito seu pronunciamento.
O general e o poeta
Allende não estava lá. O evento coincidiu com sua visita
à ONU, onde denunciou os boicotes sofridos pelo Chile: "Somos vítimas de
ações quase imperceptíveis, disfarçadas com frases e declarações que exaltam o
respeito à soberania e à dignidade de nosso país. Mas nós conhecemos na própria
carne a enorme distância que há entre essas declarações e a realidade".
Carlos Prats González assumira o comando do Exército após
o atentado contra René Schneider. Assim como o antecessor, pregava a defesa do
governo democrático: "As Forças Armadas não são uma opção ao poder
enquanto existir um regime legal", afirmava. Prats tornou-se tão
importante para repelir tendências golpistas que, durante a greve dos
caminhoneiros de outubro de 1972, foi nomeado ministro do Interior - cargo, na
prática, equivalente ao de vice-presidente.
O general cumpria essa função no final do ano, quando
Allende viajou e Neruda voltou ao Chile. A presença de Prats tranquilizava os
chilenos, em especial os da UP, mas no Estádio Nacional ainda houve lugar para
o medo. Entre as apresentações previstas para a tarde estava a execução da 1812
Overture, composição de Tchaikovsky cuja partitura original inclui tiros de
canhão. Nos camarins, os artistas que não conheciam esse detalhe se assustaram
com os disparos. Anos depois, o bailarino Patricio Bunster afirmou: "Todos
começaram a gritar e chorar. Acreditávamos que vinha o golpe".
O Músico
Os detalhes do evento ficaram a cargo de Víctor Jara.
Filho de camponeses, havia se mudado para Santiago ainda menino e, na
juventude, entrou na faculdade de teatro. Jara começou a tocar violão e cantar,
atividade que ofuscou sua carreira como diretor: nos anos 60 já era um dos
cantores mais famosos do Chile - e o mais polêmico. Comunista, esteve na
comissão que criou o hino de campanha de Allende.
Em 11 de setembro de 1973, Jara estava na Universidade
Técnica do Estado (UTE), onde trabalhava. Allende visitaria o campus naquela
manhã e pretendia convocar um plebiscito para decidir se continuava ou não seu
mandato. A notícia antecipou o levante militar - o golpe seria menos aceitável
pela opinião pública depois do anúncio de Allende. Foi das janelas da UTE que
Jara soube que não haveria plebiscito: viu os caças da Força Aérea dispararem
mísseis contra o palácio de La Moneda, a sede do governo.
No fim de agosto, apenas 18 dias antes, Prats havia
renunciado ao comando do Exército - seu sucessor foi Augusto Pinochet, cuja
lealdade nunca havia sido questionada, embora já conspirasse em segredo. No dia
11, a Marinha se insurgiu antes das 6h da amanhã, e o mito de um Exército leal
seguiu até perto das 9h, quando as rádios emitiram um comunicado exigindo a
renúncia do presidente. Allende recusou-se a renunciar. Em seu último
pronunciamento pelo rádio, declarou-se traído e pediu que os chilenos não
arriscassem a vida tentando resistir ao golpe. Não querendo cair vivo nas mãos
dos militares, suicidou-se após ordenar a rendição aos seus colegas na defesa
do palácio. Com a cidade sitiada, a UTE permaneceu sob cerco do Exército, sem
que ninguém pudesse sair. Na manhã seguinte, quem se encontrava no campus foi
preso e levado a um ginásio próximo. Jara estava entre eles.
A morte de Jara virou lenda. Na versão mais conhecida,
ele teria sido fuzilado enquanto cantava o hino da UP, no centro da quadra. O
músico na verdade foi levado aos vestiários, longe dos outros prisioneiros, e
não voltou vivo. Seu corpo apareceu na manhã de 16 de setembro, com 44 furos de
bala. Não seria a única execução sumária da ditadura, mas o fato de acontecer
contra um músico assustou a todos. "A quem ocorreria a ideia de matar um
cantor? Isso só servia para demonstrar até onde a ditadura estava disposta a
ir", diz Eduardo Carrasco, do Quilapayún, banda que tocou com Jara nos
anos 60.
Mistérios
Até hoje, as investigações não conseguiram determinar
quem deu a ordem de executar Jara. Só em dezembro de 2012, 40 anos depois, a
Justiça exigiu a prisão preventiva de oito oficiais envolvidos no crime.
Ninguém foi condenado e o inquérito segue aberto. Neruda morreu no dia 23, em
um hospital de Santiago. A notícia da morte apareceu no jornal El Mercurio ao
lado de uma foto de soldados queimando livros "subversivos". O relato
oficial falava em complicações de um câncer na próstata. Há pouco tempo, voltou
à tona a hipótese de envenenamento - segundo seu chofer, Manuel Araya, o poeta
teria piorado após receber uma injeção. Em abril de 2013, seu corpo foi exumado.
As conclusões ainda não foram apresentadas.
Prats morreu em setembro de 1974, num atentado a bomba em
Buenos Aires, onde se exilou. A emboscada foi armada pelo ex-agente da CIA
Michael Townley, que depois mataria, em Washington, o ex-ministro de Defesa de
Allende, Orlando Letelier. Ficou menos de seis anos preso nos EUA. Por
contribuir com as investigações, nunca foi extraditado à Argentina para ser
julgado pela morte de Prats.
Os acontecimentos de 11 de setembro de 1973
02:30 - Allende encerra reunião com assessores, em que se
discutiu seu pronunciamento do dia seguinte. Está marcado para a manhã do dia
11 o anúncio de um plebiscito pela continuidade de seu governo - fato que fez
os militares apressarem o golpe, previsto só para o dia 14.
03:00 - Uma rádio universitária, ligada ao governo, é
invadida e destruída por militares para não transmitir mensagens contrárias ao
golpe na manhã seguinte.
05:30 - Raúl Montero, comandante da Marinha que apoiava o
governo, é mantido em prisão domiciliar pelos golpistas. O almirante Toribio
Merino se proclama novo chefe da Armada. Começa o levante em Valparaíso.
06:15 - Allende é acordado por um telefonema informando
dos fatos. Tenta contato com os três comandantes das Forças Armadas, sem
sucesso.
07:35 - O presidente chega ao palácio de La Moneda. Quase
na mesma hora, Augusto Pinochet desembarca no quartel de telecomunicações do
Exército, de onde coordenará as ações do golpe.
07:55 - Allende faz seu primeiro pronunciamento do dia,
pela Rádio Corporación: "Até o momento, não houve nenhum movimento anormal
de tropas em Santiago", diz, baseado nas informações que possui. O
presidente ainda tem a esperança de que o levante esteja restrito à Marinha.
08:15 - No rádio, Allende manifesta confiança nos
"soldados da Pátria". Acreditando na lealdade de Pinochet, comenta
fora do ar sobre o general: "Pobre Augusto, deve estar preso".
08:30 - Rádios de oposição transmitem o comunicado da
Junta Militar, assinado por Pinochet e outros comandantes, contra a
"gravíssima crise econômica, social e moral que está destruindo o
país".
08:45 - Allende fala pela terceira vez na Rádio
Corporación. Já sabendo que o golpe é insuperável, afirma: "Só me crivando
de balas poderão impedir a vontade que é fazer cumprir o programa do
povo".
09:05 - Um avião é oferecido para tirar Allende do país.
Ele recusa. Em 1985, vaza a gravação das conversas de Pinochet com os
comandantes que sinaliza que a promessa podia ser uma armadilha: "Está
mantida a oferta... e o avião cai durante o voo".
09:10 - Allende fala pela última vez ao povo do Chile. As
torres da Rádio Corporación já haviam sido bombardeadas pela Força Aérea e o
áudio vem pela Rádio Magallanes. Sua voz está tranquila, mas também tem tom de
despedida. O presidente pede que seus correligionários não arrisquem a vida nas
ruas e garante: "Não vou renunciar. Pagarei com a minha vida a lealdade do
povo".
09:30 - Em novo telefonema para oferecer um avião a
Allende, ouve-se a voz do almirante Patricio Carvajal: "Temos que matá-los
como ratos. Que não sobre nenhum rastro deles, em especial de Allende".
10:00 - O palácio de La Moneda é cercado por tanques de
guerra. Vem o ultimato: o palácio deve ser evacuado até às 11h ou sofrerá
bombardeio.
10:10 - Allende reúne os colaboradores no Salão Toesca e
pede que não haja sacrifícios inúteis: ordena a retirada das mulheres e dos
homens que não saibam usar armas.
11:20 - Em outro ponto de Santiago, a residência
presidencial é bombardeada. Lá estava a primeira-dama Hortensia Bussi, que
consegue escapar.
11:30 - A Junta Militar decreta estado de sítio.
11:52 - Com quase uma hora de atraso, começa o bombardeio
de La Moneda. São disparadas ao menos 79 bombas e 57 mil tiros de fuzil.
12:15 - O bombardeio é interrompido. Durante o ataque, o
jornalista Augusto Olivares, diretor da televisão estatal, comete suicídio. É a
primeira morte no palácio.
12:50 - Reunidos dentro do palácio, os defensores
discutem o que fazer. Decide-se enviar três homens para negociar os termos da
rendição.
13:30 - Allende ordena que os demais defensores do
palácio saiam pela porta que dá na Rua Morandé. Diz que será o último da fila.
Enquanto os outros deixam La Moneda, porém, o presidente se retira para o Salão
da Independência. Ali, usando um AK-47 que havia recebido de presente do
presidente cubano Fidel Castro, Allende se suicida.
Cerca de 14h - Os militares anunciam que tomaram o
palácio. Dos 56 prisioneiros, 24 sofreriam execuções sumárias ou desapareceriam
nos dias seguintes ao golpe militar.
LIVRO
A Revolução Chilena, Peter Winn, Editora da Unesp, 2010.
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