Menina austríaca que virou soberana da França, Maria
Antonieta usou o luxo para se impor na corte de Versalhes. Mas, às vésperas da
Revolução Francesa, seu mundo estava condenado a desaparecer.
Virar ícone de uma época – representar uma classe, um
modo de pensar e de viver – é destino para poucas pessoas. Uma delas, sem
dúvida, foi a austríaca Maria Antônia Josefa Johanna von Habsburg-Lothringen,
ou simplesmente Maria Antonieta. O problema é que, dependendo de quem a julga,
ela é vista de jeitos completamente diferentes. A controvérsia começou ainda na
época de sua morte, no fim do século 18. De um lado, era tida como símbolo da
arrogância e da insensatez da monarquia francesa. De outro, era admirada como
uma mártir, quase uma santa, sacrificada por loucos que tinham se voltado
contra a ordem sagrada das coisas.
Durante muito tempo, a discórdia prosseguiu e, no meio da
briga, sobrava pouco espaço para quem queria conhecer a Maria Antonieta de
carne e osso. Nos últimos anos, porém, historiadores têm se esforçado para
trazer à tona uma imagem mais equilibrada da rainha. Os novos estudos mostram
que Maria Antonieta não foi uma mulher fútil e ingênua, mas uma mestra em usar
o glamour como arma para se firmar numa corte estranha e hostil.
“Maria Antonieta entendeu que ser uma rainha significava
essencialmente interpretar um papel. Mais que isso, ela logo descobriu que, por
meio de mudanças na moda, ela podia modificar esse papel e até fugir dele”,
afirma a pesquisadora americana Caroline Weber, especialista em cultura
francesa do século 18 e autora de Queen of Fashion (“Rainha da moda”, inédito
em português). “Isso mostra que, até certo ponto, ela tinha uma percepção bem
sofisticada e muito moderna do poder da imagem para mudar a realidade.”
Mas toda a astúcia com que Maria Antonieta se firmou na
corte de seu marido, o rei Luís XVI, não lhe serviu de nada quando estourou a
Revolução Francesa, em 1789, que proclamou a liberdade e a igualdade para todos
os cidadãos. Foi uma das maiores reviravoltas da história, considerada o marco
que separa a Idade Moderna da Idade Contemporânea. Era o fim do que ficaria
conhecido como o “Antigo Regime”, em que os privilégios da nobreza estavam
acima de tudo. Era o fim do mundo de Maria Antonieta.
Tudo para trás
A trágica saga de Maria Antonieta começa em Viena,
Áustria, numa corte bem menos chique que a da França. Em 2 de novembro de 1755,
a imperatriz Maria Teresa deu à luz uma menina pequenina, porém saudável. Era
Maria Antônia, seu 15º bebê. O pai, Francisco I, era imperador do Sacro Império
Romano-Germânico (que, naquela época, unia frouxamente algumas nações da Europa
Central). Mas, apesar da pompa do cargo, não era ele quem mandava. A titular do
comando do Império era Maria Teresa, que também era arquiduquesa da Áustria e
rainha da Hungria e da Boêmia (hoje parte da Alemanha).
A imperatriz era uma brilhante estrategista política.
Detestava perder tempo – aproveitou o parto de Maria Antonieta, por exemplo,
para extrair um dente. Mas, apesar de ser viciada em trabalho, era uma boa mãe.
Preocupava-se até com a formação musical dos filhos, que tinham contato com
alguns dos músicos mais talentosos da Europa. Um deles foi o prodígio Mozart,
recebido em Viena com apenas 7 anos. Reza a lenda que, ao andar pelo chão
encerado do palácio, ele teria levado um tombo. Maria Antonieta, meses mais
velha que ele, teria corrido para ajudá-lo e lhe dado um beijo na bochecha.
“Você é bondosa. Quando crescer, quero me casar com você”, teria dito Mozart.
Mas a mãe tinha outros planos para o futuro da menina.
Com a morte de Francisco I, em 1765, Maria Teresa buscou se aproximar das
outras cortes européias. Usou uma estratégia bastante comum na época: ofereceu
suas filhas em casamento. Maria Antonieta se tornou, assim, pretendente de Luís
Augusto, neto do rei francês Luís XV. Com a morte prematura dos pais, o rapaz
havia se tornado o delfim, herdeiro do trono. A idéia de Maria Teresa era criar
uma aliança duradoura com a França, que vivia entrando em conflito com a
Áustria e outros membros do Sacro Império.
A corte francesa resistiu bastante à união com a família
austríaca, mas, em 1769, veio a proposta oficial de casamento. As diferenças
entre os noivos não poderiam ser maiores. Segundo os relatos da época, Maria
Antonieta tinha uma impecável pele branca, boca carnuda, cabelos louros e olhos
azuis. Caminhava e dançava com elegância. Já Luís Augusto, um ano mais velho
que ela, parecia ter crescido demais para a idade. Era desengonçado,
absurdamente tímido e considerado um palerma pela corte francesa. Seu único
traço aparente de nobreza eram os belos olhos azuis (mas, como ele não levava
mesmo jeito para a perfeição, era levemente míope).
O casamento aconteceu em abril de 1770, numa igreja de
Viena. E teve toda a cara de arranjo político, já que foi feito por procuração.
No altar, Maximiliano, irmão da noiva, fez o papel do delfim. Logo após a
cerimônia, um cortejo com 57 carruagens se pôs a caminho da França. Por
exigência da nova pátria, ao chegar à fronteira com a França, Maria Antonieta
foi obrigada a deixar para trás tudo o que tivesse alguma relação com a
Áustria. Não apenas seu enxoval e suas damas de companhia, mas até as roupas
que usava. Maria Antonieta despiu-se e recebeu um vestido dourado para continuar
a viagem.
Em território francês, a jovem conheceu Luís XV, então
com 60 anos. Depois foi a vez do noivo. Luís Augusto, que tivera pouquíssimo
contato com mulheres e certamente era virgem, acabou dando apenas um beijo
rápido no rosto de Maria Antonieta. Uma nova cerimônia de casamento foi
celebrada em Versalhes, o subúrbio nos arredores de Paris onde residia a corte
francesa. Sob os olhos atentos da nobreza, o casal se retirou para a cama. Ali
aconteceu algo que iria se repetir durante anos: “Nada”, como escreveu o delfim
no seu diário, na manhã seguinte.
Versalhes é uma festa
Não foi fácil para a menina de 14 anos se adaptar à nova
vida na França. Claro que Maria Antonieta apreciava estar vivendo no palácio de
Versalhes, o mais esplendoroso da Europa. Mas as complicadas regras de etiqueta
da corte francesa a irritavam um bocado. Para piorar, a privacidade era
praticamente inexistente – em tudo o que fazia, ela era observada pelos membros
da corte. Além disso, por ter sido criada num ambiente quase puritano, Maria
Antonieta não engolia o costume dos nobres franceses de ter amantes “oficiais”.
Era o caso do próprio Luís XV, que, viúvo, levava às festas da realeza a
ex-prostituta Madame du Barry.
O estranhamento da jovem com a nobreza francesa fez com
que ela fosse apelidada, pejorativamente, de l·Autrichienne, “a Austríaca”. “A
parte mais antiga da corte considerava Maria Antonieta uma arrivista sem nenhum
senso da civilidade, do refinamento e da elegância francesa”, diz Caroline
Weber. Por algum tempo, a princesa teve que suportar a má fama. Até que, em
1774, o rei morreu de varíola. Luís Augusto e Maria Antonieta viraram, assim,
os soberanos da França. Num piscar de olhos, a rainha usou sua nova posição
para criar uma vida de sonho. Dispensou boa parte das antigas damas de
companhia, povoou a corte de gente jovem e bonita e ganhou do marido, agora
chamado de Luís XVI, o charmoso palácio do Petit Trianon (que antes pertencera
a Madame du Barry), em Versalhes. Maria Antonieta organizava corridas de cavalo
e se divertia em passeios de carruagem a toda velocidade.
O que mais fascinava a rainha, entretanto, era o agito da
noite parisiense (a cidade, então uma das maiores do mundo, tinha 600 mil
habitantes). Além de freqüentar óperas e teatros, Maria Antonieta adorava
participar de bailes a que as mulheres compareciam mascaradas. Assim, podia se
misturar com plebeus sem ser reconhecida. Como Luís XVI adorava acordar cedo,
ele não se incomodava em deixá-la ir se divertir sem ele. O rei, aliás, parecia
satisfeito em fazer as vontades de sua esposa. Como ela gostava de jogar
cartas, Luís XVI instalou um cassino particular em Versalhes. Na estréia da
nova atração, a rainha jogou durante 36 horas seguidas. Perdeu uma boa quantia
de dinheiro dos cofres da coroa. Nada comparável, claro, ao que ela gastava
para aumentar sua coleção de diamantes.
O poder do glamour
Por trás desse mundo de diversão e festas, Maria
Antonieta tinha que suportar muitas pressões. Os nobres que haviam sido
excluídos do convívio com a rainha não paravam de caluniá-la. Segundo Caroline
Weber, o jeito de Maria Antonieta reagir era manipular sua aparência. “Ela
usava a moda como um instrumento político, como forma de aumentar ou sustentar
sua autoridade em momentos em que ela parecia estar sob risco, como nos sete anos
que se passaram antes que ela tivesse um filho”, diz. Por meio de novas roupas,
sapatos e penteados, a rainha se impôs, colocando-se acima de qualquer mulher
francesa.
“Foi uma atitude inédita para uma rainha”, afirma
Caroline. “Antes, as soberanas francesas tinham de projetar uma imagem dócil,
vivendo longe dos holofotes. Quem tentava se envolver em política e exibir seu
poder por meio de roupas luxuosas eram as amantes dos reis.” A família real
francesa sabia da influência que as amantes costumavam ter nos rumos do
governo. Por causa disso, havia exigido, durante as negociações com a mãe de
Maria Antonieta antes do casamento, que a futura rainha fosse sedutora o
bastante para que o rei não encontrasse distração fora de casa. Deu certo.
Fosse por causa da beleza de Maria Antonieta ou pela própria falta de apetite
sexual, Luís XVI não dava suas escapadas. O problema é que ele tampouco deixava
Maria Antonieta meter a colher na política, o que irritava profundamente Maria
Teresa, que insistia que a filha tentasse transformar o monarca num fantoche a
serviço de seus interesses.
A posição de Maria Antonieta na corte francesa melhorou
bastante depois que ela e Luís XVI finalmente tiveram seu primeiro bebê. Em
1778, nasceu Maria Teresa, batizada em homenagem à avó (a imperatriz morreria
dois anos depois). O tão esperado delfim, Luís José, veio em 1781. “Com o
nascimento de um filho homem, Maria Antonieta assumia a posição
tradicionalmente forte de qualquer rainha da França que tivesse produzido um
delfim”, conta a historiadora britânica Antonia Fraser, autora do livro Marie
Antoinette – The Journey (“Maria Antonieta – a jornada”, inédito no Brasil),
que serviu de inspiração para o filme de Sofia Coppola sobre a personagem, que
deve estrear por aqui em março.
Depois do nascimento do herdeiro, Maria Antonieta ganhou
coragem para desafiar ainda mais os costumes de Versalhes. Quando teve os
últimos dois filhos, um menino e uma menina, ela se recusou a dar à luz em
público, quebrando a tradição da corte francesa. A essa altura, Maria Antonieta
parecia viciada em flertar com a impopularidade. Flertar, aliás, tinha se
tornado uma rotina na vida dela desde o fim dos anos 1770, quando conhecera o
belíssimo conde sueco Axel Fersen. Se não existem provas de que eles chegaram a
ter relações sexuais, há poucas dúvidas de que os dois se amavam: os diários de
Fersen, em linguagem cifrada, falam de uma “Josefina”, que certamente era Maria
Antonieta.
Tragédia anunciada
Entre 1779 e 1782, Maria Antonieta e o conde Fersen
tiveram que se separar. Ele estava na América, lutando ao lado das tropas
francesas pela independência dos Estados Unidos. A saudade do amado foi o maior
impacto que a guerra teve sobre o cotidiano da rainha. Nessa época, ela
transformou parte do Petit Trianon numa réplica das vilas camponesas da França,
com casinhas simples, vacas e ovelhas. Para completar o faz-de-conta, Maria
Antonieta passou a se fantasiar de pastora.
Longe de Versalhes, os camponeses de verdade e o resto do
povo francês viviam um período difícil. A economia cambaleava, com o governo
atolado em dívidas. Os gastos com a guerra na América, que acabou em 1783, só
pioraram o cenário. Maria Antonieta ganhou, então, um novo apelido: “Madame
Déficit”. Os gastos da rainha tinham um impacto mínimo no total das despesas da
nação, é verdade. Mas seus hábitos extravagantes se tornaram o principal alvo
da revolta popular contra tudo o que havia de errado no governo.
A péssima colheita de 1788 deixou os camponeses famintos
e desesperados. Enquanto isso, a classe média (a burguesia) reclamava dos
privilégios dos nobres. Debaixo de tantas críticas, Luís XVI tomou a pior
decisão de seu reinado. Convocou, para maio de 1789, uma reunião dos chamados
Estados Gerais: uma assembléia reunindo representantes do clero, da nobreza e
do povo. Em vez de apoiar as tímidas reformas que o rei pretendia fazer, os
Estados Gerais logo foram dominados pelos não-nobres. Em 9 de julho, eles
conseguiram criar a Assembléia Nacional Constituinte. Enquanto os camponeses de
toda a França se revoltavam contra seus senhores e o povo de Paris destruía a
Bastilha (prisão-símbolo do autoritarismo do rei), a assembléia abolia o regime
feudal e os privilégios da nobreza.
Em outubro, o povo rebelado invadiu Versalhes. Durante
duas noites de agonia, Luís XVI e Maria Antonieta ficaram sitiados com os
filhos, vários nobres e uns poucos guardas. Aos gritos, a multidão exigiu a
presença da rainha no balcão do palácio. Quando ela apareceu, sua figura altiva
acalmou um pouco os ânimos. Mas a família real acabou aceitando as
reivindicações do povo: aceitou abandonar a “ilha da fantasia” de Versalhes e
se estabelecer em Paris.
A Assembléia Nacional exigiu então que o rei governasse
com uma câmara de representantes do povo. Mas Luís XVI não aceitava dividir o
poder. Em junho de 1791, ele e a rainha tentaram fugir da França, mas foram
pegos e levados de volta a Paris. Sem alternativa, passaram a esperar ajuda da
nobreza de outros países. Maria Antonieta manobrou nos bastidores para que seus
parentes atacassem a França. A Assembléia Nacional acabou facilitando: como
queria expandir a revolução pela Europa, ela deu apoio para que Luís XVI
declarasse guerra contra a Áustria. Auxiliadas pela Prússia (hoje parte da
Alemanha), as forças inimigas invadiram o país e ameaçaram marchar sobre Paris
se a família real sofresse algo. O fato foi visto pelo povo como sinal de que
Luís XVI era um traidor.
Em 20 de setembro de 1792, as forças francesas detiveram
os invasores. No dia seguinte, a república foi proclamada e a família real foi
presa. O ódio contra a nobreza atingiu o ápice. Uma das melhores amigas da
rainha, a princesa de Lamballe, foi linchada. Enfiada na ponta de um pedaço de
pau, sua cabeça foi levada até a janela da cela de Maria Antonieta, que entrou
em pânico e desmaiou.
Em janeiro de 1793, Luís XVI foi guilhotinado. Isolada na
prisão, Maria Antonieta passou a vestir apenas preto. Foi levada a julgamento,
acusada até de incesto com o filho mais novo. O processo não trouxe qualquer
evidência concreta contra Maria Antonieta. Quando o júri exigiu uma explicação
sobre o incesto, a ex-rainha gritou: “Se não respondi, foi porque a natureza se
recusa a responder tal acusação feita a uma mãe. Apelo às mães aqui presentes!”
Foi o único momento em que o público protestou em sua defesa. Condenada à
morte, Maria Antonieta viveu um papel que não combinava com ela, o de vítima.
Em 16 de outubro de 1793, foi guilhotinada em praça pública.
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