Lendo descubro um monte de
informações. Como foi bom Ler este livro.
Eu indico
Cleópatra - Uma Biografia, Stacy Schiff, Zahar
Novos estudos mostram que
Cleópatra não era devassa, não morreu picada por uma cobra, era piadista, ótima
estrategista... E estava longe de ser bela
Todos na cidade mediterrânea
de Tarso já tinham ouvido os rumores. Fofoca sempre correu rápido. Por isso,
uma multidão cada vez maior aglomerava-se nas margens do rio Cidno, em 41 a.C.,
para assistir ao espetáculo que, afinal, foi um dos mais incríveis da
Antiguidade. Em meio a uma explosão de aromas e cores de nuvens de incensos,
uma barcaça de popa dourada e velas púrpura, com dezenas de remos de prata,
subia calmamente pelas águas turquesa. A batida dos remadores marcava o ritmo
para a orquestra de flautas, gaitas e liras no convés. Lindas mulheres vestidas
de ninfa trabalhavam no leme e nas cordas. Uma escolta de navios de suprimentos
seguia atrás, levando louças de ouro, tapeçarias, joias caríssimas.
Reclinada sobre um divã e
abanada por graciosos meninos, vinha uma mulher de 28 anos, ornada como a Vênus
de uma pintura. Era, talvez seja desnecessário dizer, a pessoa mais rica do
Mediterrâneo. E também articulada, carismática, fluente em nove línguas,
versada em política, diplomacia e governo, estrategista militar. Não exatamente
bonita, mas dona de um grande senso de humor e de muito charme. Conquistava
quem quisesse. O espetáculo era para seduzir mais um - que, a bem da verdade,
estava longe de ser qualquer um. Afinal, Cleópatra, a rainha do Egito, não
podia conhecer o general romano Marco Antônio, recém-convertido em um dos
homens mais poderosos do mundo, de qualquer maneira. Esse era seu jeito de
fazer as coisas: de forma surpreendente, sim, mas muito eficiente.
Ela teve uma das pós-vidas
mais movimentadas da História. "Já virou nome de asteroide, de videogame,
marca de cigarro, caça-níqueis, clube de striptease, um esteriótipo... E
sinônimo de Elizabeth Taylor", diz (sem citar clássicos, como a peça de
Shakespeare), a escritora Stacy Schiff, autora do livro sobre a
monarca, Cleópatra: Uma Biografia.
No futuro, talvez o rosto da
egípcia se confunda com o da atriz Angelina Jolie, já que a obra deve virar
filme 3D, a ser lançado em 2013. Assim como fez Stacy, o esperado blockbuster
promete desmontar vários mitos criados em torno da rainha: os de ser uma libertina
e traiçoeira, de ter como principal atributo a arte da sedução e de ter morrido
picada por uma cobra, entre tantos outros (embora o da estarrecedora beleza,
com Angelina no papel principal, seja mais difícil de ser extinto). O problema
de Cleópatra é que sua história foi contada pelos romanos - além de serem seus
inimigos, eles acreditavam que apenas os homens podiam ser tão poderosos.
A rainha
A primeira impressão é a que
fica. E Cleópatra fascinou Marco Antônio, que acabara de vencer uma guerra
civil ao lado de Otaviano contra os assassinos de Júlio César, tio do aliado. O
próprio César havia se rendido aos encantos da rainha sete anos antes. O
encontro deles, porém, foi mais inusitado. Cleópatra estava exilada no deserto
da Síria. No primeiro ano de seu reinado ao lado do irmão e corregente Ptolomeu
XIII, com quem se casara aos 18 anos (ele tinha 10) para garantir o trono na
capital, Alexandria, em 51 a.C., o Egito sofria com secas e fome. A população
se revoltou contra a monarca quando ela financiou uma campanha militar do
general romano Pompeu, amigo de seu pai morto. E ela teve de fugir. Pompeu
enfrentou justamente César, que, vitorioso, virou o homem forte de Roma e
viajou para o Egito. Segundo o historiador da Universidade da Califórnia Stanley
Burstein, autor de The Reign of Cleopatra (sem edição no Brasil), Roma
precisava do dinheiro do rico país para custear seus altos gastos de guerra.
César instalou-se no palácio de Ptolomeu XIII e, numa tentativa de estabelecer
a paz egípcia, pediu aos dois irmãos que o encontrassem. Ptolomeu não aceitou e
proibiu o retorno de Cleópatra. Ela, porém, ajudada por comparsas, navegou
escondida por dias e, em Alexandria, enfiou-se em uma sacola usada para
transportar papiros. Assim, foi "despejada" no quarto do cinquentão
César. Não se sabe bem o que aconteceu lá. "Seja o que for, Ptolomeu
sentiu-se traído ao ver Cleópatra sentada ao lado do romano", diz
Burstein. Furioso, mandou cercar o castelo.
O sítio durou seis meses e
ajudaria a revelar a visão de estrategista da rainha. Como Duane Roller
escreveu em Cleopatra: A Biography (inédito em português), sem apoio popular,
Ptolomeu XIII foi preso e sua irmã Arsínoe tomou o trono. Chamado a conversar com
César, ele se desmanchou em lágrimas, pediu clemência e comoveu o general. Mas
logo acionou suas tropas contra o casal. O teatro não surpreendeu Cleópatra. Ao
contrário: ela mesma teria sugerido a César fingir piedade e libertar Ptolomeu,
prevendo que, ao insistir nos combates, ele se tornaria ainda mais impopular. A
chegada de reforços romanos encerraria a Guerra Alexandrina. Ptolomeu XIII
morreu tentando fugir e Arsínoe foi presa - depois seria executada a mando da
irmã. Cleópatra terminou a temporada grávida de César. Era o primeiro filho do
general, futuro ditador de Roma. O trono, claro, sobrou para Cleópatra, agora
casada com seu outro irmão, Ptolomeu XIV. Era a forma que César encontrara
"para abrandar a raiva romana por ele próprio estar indo para a cama com
ela", afirma Stacy.
Nada poderia ser melhor ao
projeto político da faraó do que gerar esse filho, Cesário. "A aliança com
César, envolta em sedução e romance, foi, antes de tudo, um ato político bem
planejado e de expressivas consequências", afirma Maurício Schneider,
doutor em egiptologia pela USP. "A rainha conseguiu vencer a oposição, se
firmar no trono e ainda arrastou o romano para seus objetivos imperiais,
dando-lhe um filho." (Mais tarde, Ptolomeu XIV seria envenenado e Cesário
se tornaria corregente da mãe.) Seu reinado seguiu de vento em popa. Ela
governava com pulso firme. "Ministrava a justiça, comandava o Exército e a
Marinha, regulava a economia, negociava com poderes estrangeiros e presidia os
templos", diz Stacy. Ganhou o apoio dos súditos com a economia próspera e
fez crescer também seu patrimônio, herdado da família e construído, sobretudo,
em transações comerciais. Por ano, calcula-se, seus rendimentos batiam 15 mil
talentos de prata. Um sacerdote, cargo dos mais cobiçados, ganhava 15. Em
valores atuais, a fortuna alcançaria 96 bilhões de dólares (quase o valor do
orçamento deste ano do governo brasileiro para investimentos). A vida de
Cleópatra mudaria quando seu amante foi assassinado pelos senadores romanos, em
44 a.C. Seguiu-se (outra) guerra civil, que terminou anos depois com a vitória
de Marco Antônio e Otaviano e a instalação do Segundo Triunvirato. Foi quando a
monarca fez sua triunfal apresentação a Antônio - e voltou a ganhar um amante
poderoso.
A mulher
Diferentemente do que se
imagina, a rainha do Egito estava longe de ser uma devassa. Júlio César foi
provavelmente seu primeiro homem, e Antônio, o segundo (e último). Não há
registro confiável de outros envolvimentos amorosos. Além de Cesário, ela teve
mais três filhos, todos reconhecidos por Antônio: Alexandre Hélio e os gêmeos
Cleópatra Selene e Ptolomeu Filadelfo. O relacionamento dos dois foi longo (11
anos) e, de forma geral, divertido. O casal adorava promover grandes banquetes.
Eles fizeram um "pacto de boa vida" e apelidaram a si mesmos de
Inimitáveis Viventes.
Cleópatra Thea Philipator
("deusa que ama o pai", um dos muitos títulos que se atribuiu) estava
acostumada ao luxo e à fartura desde que nascera, em 69 a.C., segunda de cinco
filhos (leia à pág. 29). O pai, Ptolomeu XII, ou Ptolomeu Auletes, era
provavelmente um filho bastardo, da dinastia ptolomaica ou lagide, descendente
do general, provador oficial e amigo íntimo de Alexandre, o Grande. A Ptolomeu
I coube o controle do Egito após a morte do macedônio. Era o início da Era
Helênica. Para garantir a própria legitimidade e provar sua ascendência divina,
os ptolomaicos faziam como os deuses: casavam-se entre eles. Cleópatra,
portanto, tinha sangue grego. Não se sabe quase nada sobre sua mãe, que
desaparece na primeira infância da menina. Há dúvidas, inclusive, sobre quem
ela seria. Criada por babás, a garota cresceu entre políticos e pensadores.
Viajava muito com o pai e teve ótima educação. Podia recitar de cor a Ilíada e
a Odisseia. Sabia aritmética, geometria, música e astrologia. Formou-se em
retórica e aprendeu nove línguas, inclusive hebraico, troglodita (uma língua
etíope) e egípcio (coisa que nenhum ancestral seu o fez).
Não se parecia nada (talvez
a peruca) com Liz Taylor. "Não há retratos de Cleópatra, a não ser os
bidimensionais das moedas que cunhou", diz Roller. "Elas mostram um
nariz e um queixo proeminentes, características de família." Segundo o
egiptólogo Júlio Gralha, da Universidade Federal Fluminense, isso pode também
ser simbólico: ela queria ser vista parecida com os antepassados, de forma a
legitimar seu poder. Para compensar a "feiura", era elegante e
carismática. "O contato de sua presença, se se convivia com ela, era
irresistível", escreveu o filósofo grego Plutarco. "Ela era astuta e
inteligente, e isso era grande parte de seu charme", afirma Gralha. Sem
contar o senso de humor. "Capaz de fazer os outros rirem mesmo sem
querer", resumiu o orador romano Cícero.
Cleópatra foi careca em
certos momentos (possivelmente durante as epidemias de piolho). Adepta das
tradições locais, nessas ocasiões usava as perucas com as quais sempre foi
retratada, embora um modelo com coque fosse mais provável. Costumava associar
sua imagem à da deusa Ísis, dominava tratamentos de beleza (adorava os banhos
de leite de jumenta) e maquiagem. Segundo Stacy Schiff, ela ainda era fascinada
por venenos - estudava muito o assunto, consultava-se com químicos e médicos,
sabia as propriedades de cada tipo, quais matavam mais lentamente...
A lenda
É impossível dissociar a
história de Cleópatra à de Roma. Na península Itálica, as coisas não iam nada
bem entre Otaviano e Marco Antônio. A relação era cordial apenas na aparência -
Antônio até se casara com a irmã de Otaviano, Otávia, para tentar fortalecer a
aliança. Só que ela degringolou de vez em 37 a.C., quando o general mudou para
o Egito para viver com a amante. Lá, continuou a comandar seu exército e a
conquistar territórios para Roma. Muitos deles, como a ilha de Chipre, parte do
atual Líbano, terras na Líbia e na costa da Turquia modernas, porções de Creta
e quase todas as cidades do litoral fenício, Antônio "deu" a
Cleópatra - que, assim, dirigiu um território tão grande quanto o do auge da
Era Helênica. Otaviano ficou uma fera. Ele tinha outra forte razão para odiar a
rainha egípcia: ela era mãe do filho legítimo de César, uma ameaça ao seu poder
em Roma. (Além de sobrinho de César, ele fora adotado como herdeiro direto.)
Quando Marco Antônio pediu o divórcio de sua irmã, foi a gota d’água.
Otaviano começou então uma
campanha contra Cleópatra - e, assim, deu início à série de lendas que
surgiriam em torno dela. Na sua versão dos fatos, Antônio era um joguete nas
mãos da monarca ardilosa, que pretendia conquistar Roma, como fizera com o
general. Em outubro de 32 a.C., declarou guerra à rainha. Ela rumou com o
amante para o front militar, na entrada do golfo de Corinto. Os romanos, porém,
não aceitaram a presença de uma mulher no acampamento. Muitos desertaram,
inclusive homens da confiança de Antônio, o que o deixou abalado. O problema
aumentou com a Batalha do Ácio. Cleópatra propôs que, em meio ao confronto,
seus navios (carregados com grande parte de seu tesouro) furassem o bloqueio e
voltassem para o Egito - seguidos pela frota de Antônio. Quando o vento estava a
seu favor, ela cruzou a linha inimiga e o general foi atrás dela, mas seus
homens não o seguiram. Provavelmente porque estavam lutando no mar contra a
vontade (eles preferiam a terra, Cleópatra insistiu no combate naval) ou porque
achavam mais honroso continuar brigando pelo controle de seu país do que seguir
uma estrangeira.
O fato é que Marco Antônio
foi embora arrasado e seus homens perderam a guerra. "Passou-se quase um
ano até que o exército de Otaviano entrasse em Alexandria", diz Stanley
Burstein. "No intervalo, Antônio caiu em uma profunda depressão, enquanto
Cleópatra eliminava os inimigos suspeitos (de conspirar contra ela e o
amante)." A rainha também mandou construir um mausoléu às pressas. E teria
iniciado um processo de negociação com Otaviano, oferecendo a abdicação em
troca de clemência - o romano até concordava, mas queria a cabeça de Antônio.
Nem na tormenta o bom humor do casal se dissipou: continuava a promover
bebedeiras. Mas, apropriadamente, a dupla trocou o nome da Sociedade dos Inimitáveis
Viventes para Companheiros da Morte. Quando Otaviano finalmente chegou a
Alexandria, Cleópatra fugiu para o mausoléu, que já abrigava seu tesouro, e
mandou um mensageiro dizer a Antônio que havia se suicidado. Sabia que, assim,
ele se mataria também. "É claro que Cleópatra havia cedido ao pedido de
Otaviano de sacrificar o amante em troca do Egito", diz Stacy Schiff.
"Ela é acusada de tantas traições que é difícil saber como entender essa,
talvez a mais humana e menos surpreendente."
Fórmula mortal
Ao saber da notícia, o
general enfiou uma espada no peito, mas errou o coração e pediu ajuda dos
criados, que o abandonaram. Ele teria descoberto que a monarca não estava
morta, arrastou-se até o mausoléu e foi içado para dentro. Desesperada,
Cleópatra teria gritado e esmurrado o próprio peito, enquanto Antônio morria em
seus braços. Os homens de Otaviano invadiram o local em seguida e a prenderam.
Dias depois, ela tomou veneno. A cobra que a teria picado é uma invenção, fruto
da "conveniência metafórica" - o animal era símbolo do poder dos
faraós. Pesquisa do historiador Christoph Schäfer, da Universidade de Trier,
concluiu que ela mesma preparou seu coquetel: "Considerando os sintomas,
foi uma mistura de acônito, uma planta tóxica, cicuta e ópio." Ganhou um
pomposo cortejo um ano depois. Segundo o historiador romano Cássio Dio, a
procissão superou todas as outras em "custos e magnificência". A
rainha aparecia em seu leito de morte, em gesso pintado, junto com uma
serpente. (Outra pista sobre como prosperou a versão da picada suicida.)
Cleópatra morreu em 30 a.C.,
mas desde agosto do ano anterior o seu Egito não existia mais. Era só mais uma
colônia de Roma. E a campanha contra ela, iniciada em vida por Otaviano,
consolidou-se após a sua morte. Os romanos atrelaram toda a história da última
faraó à sua sexualidade. Afinal, era melhor pensar que a mulher mais poderosa
do mundo no século 1 a.C. conseguiu quase tudo o que quis porque era
incrivelmente sedutora - e não porque era incrivelmente inteligente.
Poder e sangue
A dinastia Ptolomaica (305
a.C. a 30 a.C.)
Os Ptolomeus se mantiveram
no poder casando-se (e matando-se) entre si, entre 305 a.C. e 31 a.C. Na terra
dos governantes que eram também divindades, os "estrangeiros" suaram
para fabricar uma ligação com os típicos faraós. Por isso, os gregos
ptolomaicos assumiram o casamento entre irmãos, um hábito egípcio. O incesto -
desconhecido na Grécia, a ponto de não haver na língua uma palavra para isso -
evitava "manchas" no sangue azul ou eventuais disputas pelo poder nas
bodas com elites estrangeiras. Dos 15 casamentos centrais da dinastia, dez
foram entre irmãos. Nos demais, sempre havia algum parentesco. As uniões,
porém, não evitaram crimes violentos em conflitos sucessórios. A tia bisavó de
Cleópatra VII era esposa e sobrinha de Ptolomeu VIII. Ele a estuprara quando
ela era adolescente. Cleópatra perdeu a irmã mais velha, Berenice, morta pelo
pai. Ela mesma foi responsável direta pela morte de dois irmãos.
Saiba mais...
O lugar do feminino no Egito
As características da
sociedade em que se destacou Cleópatra VII
Cleópatra VII serve até hoje
de inspiração e modelo de mulher forte, determinada e que revolucionou uma
época subvertendo o papel até então imposto às mulheres em uma sociedade na
qual reinavam o silêncio e a submissão do feminino ao masculino.
Apesar de recorrente, a
afirmação de que, no Egito antigo, homens e mulheres possuíam igualdade plena
de direitos é falaciosa. Muito embora o espaço e a importância devotados a elas
fossem muito maiores que os existentes em outras sociedades da Antiguidade,
entre os egípcios existiam, sim, hierarquias de gênero.
Ao longo da história
egípcia, a deusa Isis foi o modelo de mãe e esposa a ser seguido. A lenda conta
que o marido de Isis, Osíris (então governante do Egito), foi assassinado por
seu irmão Seth e seu corpo foi esquartejado e espalhado por diversos lugares.
Determinada, a deusa percorreu o país em busca dos membros a fim de trazer
Osíris de volta à vida e gerar um herdeiro, Hórus. A deusa Hathor, por sua vez,
simbolizava a natureza dual que os egípcios acreditavam existir nas mulheres:
são benevolentes, símbolos de fertilidade e prosperidade, mas têm um lado
perigoso e destrutivo, que deve ser apaziguado. Os Ensinamentos de Ptah-Hotep,
um conjunto de máximas do século 18 a.C. sobre as relações humanas, orienta os
homens a amar as esposas e deixá-las afastadas de posições de poder:
"Reprima-a, pois seu olho é um vento de tempestade quando ela
encara".
O contexto em que governou
Cleópatra, porém, não é o do esplendor faraônico. Trata-se de um Egito
pós-dominação grega, bastante influenciado pela herança cultural da Grécia
clássica e helênica. A tradição grega vê os espaços de destaque, especialmente
na política, como masculinos por excelência. Nesse sentido, Cleópatra
comportaria, na visão dessa sociedade, um desvirtuamento, o qual deveria ser
condenado. Os escritos sobre a rainha mostram o olhar masculino sobre os
sujeitos femininos, no qual características como agressividade, iniciativa e
poder de decisão são atributos reservados aos homens, nunca às mulheres, das
quais esperava-se submissão. A imagem de Cleópatra como uma mulher perigosa,
cheia de ardis e pouco confiável, certamente foi construída por homens que
julgavam o papel ativo de uma mulher na política algo intolerável. Mais
interessante ainda é observar como sua imagem produzida pelo imperador romano
Otávio Augusto destina-se, na realidade, não a disforizá-la, mas a diminuir seu
então inimigo, Marco Antônio. Ao destacar as habilidades sexuais de Cleópatra e
como Antônio deixou-se cair a seus pés, Otávio deixa desacreditadas as virtudes
políticas de seu oponente, que teria provado ser fraco e não ter capacidade de
liderança.
Ao tratar do feminino na
Antiguidade, há que se ter cuidado: "A maioria das fontes históricas (do
período) foi produzida por homens", diz o historiador Gregory da Silva
Balthazar.
O império de Alexandre, o
Grande, favorece um novo modelo de mulher, que mistura as tradições
macedônicas, gregas clássicas e locais, no caso, egípcias. O papel da mulher no
período helenístico já não é mais o da passividade e da submissão. Muitas
assumem diversos reinos criados especialmente após a morte de Alexandre. As
rainhas possuíam direitos e riquezas superiores aos comuns até então. Um caso
interessante é de Arsínoe II, filha de Berenice I e Ptolomeu I, que se tornou
rainha ao casar-se com seu irmão Ptolomeu II. Após a morte dele, Arsínoe
tornou-se dona de um Exército, o qual comandou em batalhas com o intuito de
assegurar a continuidade do poder para seus filhos, tornando-se uma regente
bastante poderosa.
Falar sobre as mulheres no
Egito antigo não é tarefa fácil. Esbarramos no silêncio das fontes, na sua
visão masculina e nos limitadíssimos materiais acerca da vida de mulheres
comuns, restringindo a análise, quase sempre, às "grandes", como
Cleópatra. Mas o esforço é válido. Dando voz a essas mulheres, podemos inspirar
diversas outras a lutar para diminuir, cada vez mais, a fenda que segrega o
espaço feminino do masculino na sociedade atual.
* Maria Thereza David João é
doutoranda em História Antiga e autora de Tópicos da História Antiga Oriental,
entre outros livros e artigos publicados.
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