Incesto real
Os casamentos entre parentes de dinastias europeias eram
arranjados para favorecer alianças políticas. Mas geraram descendentes com
problemas físicos e mentais. Nos Habsburgos, a sequela mais visível era o
queixo protuberante
por PEDRO PROCÓPIO | 04/10/2011 19h02
Conta-se que, ao pisar na Espanha pela primeira vez,
Carlos 5º, do Sacro Império Romano-Germânico, ouviu o grito de um homem do
povo: "Majestade, feche a boca, pois as moscas deste país são muito
insolentes". Corria o ano de 1517, e o abusado camponês, se existiu,
percebeu de cara um defeito no nobre nascido na cidade de Gante (atual Bélgica)
que vinha assumir o trono espanhol. Carlos 5º (e 1º da Espanha), que lá estava
como herdeiro de seus avós maternos, Isabel 1ª de Castela e Fernando 2º de
Aragão, os chamados Reis Católicos, era dono de um queixo descomunal. Tanto que
não conseguia unir os lábios e impedir o acesso de possíveis insetos voadores,
ficando com o ar apalermado, que teria motivado o gracejo do petulante plebeu.
Seu feio trineto Carlos 2º da Espanha, além da coroa,
levou de brinde a deformação óssea da face conhecida como prognatismo - a
mandíbula se projeta em relação ao maxilar e o lábio inferior se torna mais
saliente. No caso de Carlos 2º, o queixão acarretava dificuldades de mastigação
e de fala. Os Carlos, você deve ter reparado, partilhavam de um defeito
genético. Estigma marcante durante séculos nos Habsburgos, a poderosa dinastia
originária da Suíça, à qual pertenciam os dois monarcas, o prognatismo ficou
tão identificado com a família que é conhecido também como mandíbula ou lábio
de Habsburgo ou de Áustria. Os rostos desses e de outros soberanos - Filipe 4º
da Espanha, pai de Carlos 2º, por exemplo - estão bem documentados em pinturas.
Considerada a hipótese de que os pintores de corte - mesmo um mestre como Diego
Velázquez - amenizavam os traços para não irritar seus retratados, é possível
imaginar queixadas mais avantajadas ainda.
O culpado de tudo isso - o primeiro Habsburgo prognata -
foi possivelmente Ernesto 1º da Áustria (1377-1424). Se a praxe fosse buscar
gente de outras origens para os casamentos, o gene queixudo de Ernesto
encontraria novos DNA s e provavelmente sumiria em sua descendência. Acontece
que os Habsburgos, como outros nobres, apreciavam matrimônios com parentes, a
endogamia. Era um jeito de preservar o sangue azul e estabelecer alianças
políticas. A falta de "sangue novo" na herança genética, no entanto,
perpetuava (e acentuava) características físicas indesejáveis, provocava o
surgimento de doenças congênitas e aumentava a mortalidade infantil naquelas
famílias.
Geneticistas espanhóis traçaram a árvore genealógica de
Carlos 2º e constataram que sua carga genética era equivalente à de um incesto
entre irmãos ou entre pais e filhos. "Provavelmente, o gene do prognatismo
atuava combinado com outros, o que fazia com que alguns dos Habsburgos
apresentassem a má-formação e outros não", afirma Jaime Anger, cirurgião
plástico do Hospital Israelita Albert Einstein de São Paulo.
O prognatismo aberrante não era a única desgraça de
Carlos 2º, sugestivamente alcunhado de "o Enfeitiçado". Só começou a
andar aos 4 anos e tinha desarranjos intestinais e febres, além de certo atraso
mental. De todas as mazelas, nada superou, para fins dinásticos, sua
incapacidade de gerar um herdeiro em seus dois casamentos - Carlos seria
estéril. Quando morreu, aos 38 anos, aparentava uma idade muito mais avançada.
Além do célebre queixo de Habsburgo, discute- se a
presença de outros males de origem genética transmitidos pelos repetidos
casamentos entre parentes das dinastias europeias. A porfiria, um distúrbio do
metabolismo, permaneceu por muito tempo sendo a explicação para a insanidade
mental do rei George 3º do Reino Unido (1738-1820). Nos anos 1960, apareceram
artigos com títulos como A Insanidade do Rei George 3º: Um Caso Clássico de
Porfiria e Porfiria nas Casas Reais de Stuart, Hanôver e Prússia, escritos
pelos psiquiatras e historiadores Ida Macalpine e Richard Hunter. Segundo essa
visão, Mary Stuart (1542-1587) seria a primeira personalidade documentada a
passar a enfermidade adiante em sua árvore genealógica. No entanto, há outras
hipóteses para a instabilidade de George - em cujo reinado os Estados Unidos se
tornaram independentes dos ingleses. Já na década de 40, falava-se em psicose
maníaco-depressiva. Timothy Peters, da Universidade de Birmingham, num estudo
do ano passado, prefere considerar a possibilidade de transtorno bipolar. Como
a porfiria não tem uma manifestação visual facilmente identificável em pinturas
e não se desenterraram os nobres para fazer um diagnóstico retrospectivo,
cravar explicações científicas definitivas é mais difícil que no caso do
escancarado prognatismo mandibular.
Outra enfermidade que foi tida como praga endogâmica é a
hemofilia, que teria se espalhado como verdadeira "doença real" por
culpa da rainha Vitória do Reino Unido (1819-1901). Há que se considerar dois
fatos. Primeiro, que Vitória provavelmente não herdou o gene hemofílico dos
costumeiros matrimônios entre parentes - no caso dela, teria ocorrido uma
mutação cromossômica espontânea. Outra é que casamentos entre primos (Vitória
se casou com um de primeiro grau, Albert) raramente aumentam as chances de uma
possível transmissão desse transtorno da coagulação sanguínea. Isso posto,
Vitória, de fato, legou a hemofilia a algumas pessoas de sua farta
descendência. Entre elas, figura o bisneto Alexei Nikolaevich Romanov, herdeiro
do trono russo assassinado em 1918, aos 13 anos, pelos bolcheviques. Tudo isso
era especulação até 2009, quando se publicaram os resultados de exames de DNA
feitos em ossos dos Romanovs descobertos dois anos antes. Comprovado: Vitória
passou ao menino que não foi czar a hemofilia B, segundo tipo mais comum da
doença.
O rei "Paquita"
Características como elevado apetite sexual e loucura
foram associadas aos Bourbons ao longo do tempo. O rei Fernando 6º da Espanha
(1713-1759) teria transado com a mulher agonizante, Bárbara de Bragança. Seu
meio-irmão e sucessor, Carlos 3º, era obsessivo: fazia tudo sempre exatamente
nos mesmos horários. A mandíbula de Áustria, em virtude de ancestrais comuns,
também se fez presente no rosto dos Bourbons.
Como os Habsburgos, eles também se casaram muito entre
si. Uma das histórias mais curiosas está ligada à rainha Isabel 2ª da Espanha
(1830-1904) e ao seu marido, o rei consorte Francisco 1º (1822-1902). Ambos
eram primos em dose dupla - o pai dele era irmão do pai dela, e a mãe dele era
irmã da mãe dela. Acontece que Francisco era gay, e Isabel começou a pular a
cerca. Nos salões e nas ruas de Madri, Francisco tinha o apelido de Paquita
(Chiquinha). Existe até a possibilidade de os 11 filhos de Isabel (só 5
chegaram à idade adulta) não serem de Francisco. Por essa tese, o rei Afonso
12, bisavô do rei atual, Juan Carlos 1º, seria fruto de um caso de Isabel com o
capitão Enrique Puigmoltó. Se assim foi, as traições de Isabel serviram como
antídoto contra os males da endogamia bourbônica.
Clã internacional
A instituição do matrimônio consanguíneo levou à formação
de um grande clã internacional de monarcas. O inglês e o russo médios tinham (e
ainda têm) tipos físicos distintos, mas o mesmo se podia dizer de dois
soberanos que reinavam separados por milhares de quilômetros. George 5º do
Reino Unido (1865-1936) e o czar Nicolau 2º da Rússia (1868-1918) eram netos do
rei Christian 9º da Dinamarca, apelidado de “o sogro da Europa” graças ao
sucesso dos casamentos políticos de seus filhos. Os primos George e Nicolau
mais pareciam gêmeos (veja foto na pág. ao lado). Em 1893, quando George, então
príncipe e duque de York, casou-se, a plebe presente à cerimônia, em Londres,
chegou a se confundir ao ver o convidado Nicolau.
Por essa época, a mandíbula de Habsburgo já havia cruzado
o oceano e chegado ao Brasil. Produto de casamentos entre parentes e com
diferentes sobrenomes dinásticos nas costas – Bragança, Orleans, Habsburgo,
Bourbon -, o nosso dom Pedro 2º (1825-1891) também foi prognata. Seu avô, dom
João 6º, era filho de um tio com uma sobrinha. Seu pai, dom Pedro 1º, e sua
mãe, a imperatriz Leopoldina (filha do imperador do Sacro Império
Romano-Germânico e, portanto, Habsburgo de alta linhagem), eram primos em
segundo grau. João, Pedro e Leopoldina tinham o queixo deslocado para a frente.
Em As Barbas do Imperador, a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz defende que
Pedro 2º deixou os pelos crescerem no rosto para parecer mais velho e
respeitável. Reza outra lenda que o visual servia mesmo para camuflar o
queixão.
A endogamia, no entanto, não se restringiu às monarquias
europeias. Exemplos são encontrados no Egito antigo, onde havia casamentos
entre irmãos. Cleópatra casou-se com dois, o Ptolomeu 13 e o 14. Em Roma,
ocorriam enlaces entre primos, caso de Nero e Claudia Octavia. Há indícios de
que os incas na América do Sul também casavam irmãos e irmãs sem drama de
consciência Ainda que haja nobres que gostem de se casar entre si, existe uma
diversificação bem maior de fontes conjugais. O rei Eduardo 8º, em dezembro de 1936,
abdicou do trono britânico para se unir a Wallis Simpson, uma americana duas
vezes divorciada. Quem ficou no seu lugar foi George 6º, o gago retratado no
filme O Discurso do Rei e pai da rainha Elizabeth. Filipe de Bourbon, filho de
Juan Carlos 1º da Espanha e da rainha Sofia, casou-se em 2004 com a plebeia
Letizia Ortiz. O príncipe William, filho de Charles e Diana, encontrou nos
corredores da faculdade sua carametade, Kate Middleton. A outrora fechada
família europeia de monarcas, de uns tempos para cá, é capaz até de aceitar em
seu seio um descendente do lendário e irreverente camponês espanhol. Aquele do
mosquito na boca do rei.
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