Judeu polonês sobreviveu a sete campos de concentração
nazistas em quatro países.
Conheceu Stalin, virou paraquedista e instrutor
militar em Israel e acabou imigrando para o Rio de Janeiro, onde foi taxista
até dois anos atrás.
Flávia Ribeiro | 25/04/2012 12h37
"É cobra. Pode jogar no bicho que dá cobra",
diz, com um sorriso largo, o taxista aposentado Alexander Liberman sobre o
número marcado em seu antebraço esquerdo: A18.534. O bom humor certamente o
ajudou a chegar aos 80 anos e não dá pistas do que a vida lhe reservou até
aqui. Aos 9 anos, levou um tiro e passou por sete campos de concentração na
Polônia, Alemanha, Áustria e Bósnia. Perdeu pai, mãe e três irmãos, mortos
pelos nazistas. Com o fim da Segunda Guerra, foi levado para a Rússia e
conheceu Josef Stalin. Soldados soviéticos ficaram tão impressionados com seu
precário estado de saúde que decidiram mostrá-lo ao ditador. Em 1947, embarcou
no navio Exodus para Israel, que levava ilegalmente refugiados judeus, mas
acabou preso na ilha de Chipre após confrontar tropas inglesas que
interceptaram o navio. Mais tarde, já sargento do Exército israelense, foi
atingido por estilhaços de duas granadas durante a Guerra de Independência do
país. Uma delas o deixou surdo de um ouvido. Tudo isso até os 21 anos de idade.
Foto: Marcos Pinto
Aos 25, veio para o Brasil, onde foi motorista de táxi
até cerca de dois anos atrás nas ruas do Rio de Janeiro. E só recentemente
ganhou coragem para contar sua história: "Antes eu me revoltava... Agora
conto porque já estou no final... É lógico que me emociono lembrando, já tive
muito pesadelo com isso. Mas não tenho mais. O que tinha que passar, passei.
Perdi tanta coisa na minha vida... Mas agora estou tranquilo."
Como era sua vida antes da guerra?
Tive uma infância tranquila até os 9 anos. Meu pai era
comerciante de material de sapateiro, com meu tio. Nasci na Polônia, em 1930.
Eu tinha três irmãos: um de 7 anos, uma de 3 e uma bebê de 6 meses.
O que houve com sua família após a invasão da Polônia, em
1939?
Os alemães logo caíram em cima dos judeus. Primeiro,
foram à loja e levaram meu pai e meu tio para Treblinka. Soubemos que os dois
foram mortos na guilhotina lá. A gente se escondeu no forro de casa por dois
meses, vivendo do que havia na cozinha. Fomos descobertos, nos levaram para um
polígono da cidade e botaram a gente na fila para morrer. Vi pessoas sendo
fuziladas. Aí pegaram minha irmãzinha de 6 meses, jogaram para o alto e
atiraram, como se fosse uma brincadeirinha. Gritei na hora para minha mãe:
"Vou fugir. Não vou dar minha cabeça!" Fugi, me desviando das balas,
mas uma pegou aqui (mostra uma cicatriz no abdômen). Consegui sumir na floresta
que havia ali perto.
Alguém da sua família sobreviveu?
Não sei quando morreram. Não achei nada. Mas morreram, ou
eu teria achado. Procurei, mas nunca tive notícia. Descobri um tio em Israel.
Depois, achei uma tia na Argentina e um tio no Uruguai.
E o tiro no abdômen?
Essa bala não caiu num lugar para me matar, né? Encontrei
seis ou sete pessoas escondidas na floresta. Tinha que entrar naquele grupo que
estava lutando com os alemães. Eu era o mais novo, mas era bem desenvolvido e
acharam que eu podia ajudar em alguma coisa. Arrumamos gaze e iodo para o
ferimento. E não inflamou.
Como era a vida na floresta?
Vivíamos em cima das árvores para não sermos vistos. Os
outros tinham fuzis. Me arranjaram um revólver pequeno e me ensinaram a atirar.
Fiquei uns dois meses com esse grupo. Éramos partisans. Íamos às casas próximas
pegar comida, mas não tinha muito. Uma vez me mandaram à cidade comprar comida,
achando que, porque eu era criança, não desconfiariam de mim. Quando eu estava
saindo da loja, dois soldados me viram e perguntaram: "Você é judeu?"
Eu disse que não, mas me levaram para um quarto e abaixaram minha calça. Fui
levado para um campo de trabalho em Budzyn, onde plantávamos batatas. Fui
escolhido várias vezes para morrer, mas me escondia nos barracões lotados. No
dia seguinte, saía para trabalhar normalmente. Alguns meninos conseguiram se
esconder, outros foram achados e morreram. Passei por sete campos de
concentração. Em alguns, fiquei só um período de quarentena antes de ser
mandado para o que deveria ficar mesmo. Com a guerra já braba, os russos se
aproximaram e os alemães levaram a gente para o campo de Majdanek, com sete
câmaras de gás. Os nazistas me escolheram para arrancar os dentes de ouro dos
judeus mortos usando alicates. Tinha gente que sobrevivia e pedia:
"Arranca os dentes, mas não conta que estou vivo!" Tirei dentes de
ouro de pessoas vivas. Não doía, não gritavam. Depois, fomos levados embora, a
pé.
Quando?
Eu não sabia mais do tempo. Sabia que estava no
galinheiro com as outras galinhas e que precisava arranjar um jeito de
sobreviver. A guerra é uma confusão danada.
Como o senhor lidava com tudo isso?
Só pensava em viver. Vi um tio morrer e não chorei.
Encontrei o irmão do meu pai num dos campos - morreu de tifo. Não dava tempo de
chorar. Chorei uma só vez, quando fui pego, aos 9 anos. Achava que ia morrer,
mas nunca pensei em entregar os pontos.
Mas o senhor não sentia revolta?
Claro! Quando pedi ajuda a Deus, não fui atendido. Eu
disse então: "Sou ateu!" E eu me revoltava comigo mesmo por ter
nascido judeu. Se eu não fosse judeu, não estaria passando por tudo aquilo. Era
o que eu pensava. Perdi tanta coisa na vida... e era uma criança. Eu não
entendia.
E depois de Majdanek?
Fui levado para Birkenau, em Auschwitz. Foi lá que me
marcaram, botaram o número no meu braço: A18.534. Pode jogar no bicho que dá
cobra! Foi um dos campos em que estive de passagem. Lá me ensinaram a ser
ferramenteiro. Para não morrer, tinha vontade de aprender tudo. Me levaram para
trabalhar numa fábrica de aviões e canhões. Fui para um lugar chamado
Laurahütte (um subcampo do complexo Auschwitz-Birkenau). O engenheiro de lá
gostava do meu serviço, tinha pena de mim e me dava, escondido, uns sanduíches.
Mas os americanos se aproximaram e tive de me mudar de novo. Fomos para vagões
de trem superlotados. Levaram a gente para Mauthausen-Gusen (Áustria) e depois
para Dachau (Alemanha). Ficamos também pouco tempo. De lá, fomos para o campo
de Gradiska (Bósnia). Quando cheguei, em 1945, eu já estava tão magro que
parecia um esqueleto vivo. Estava com 14 anos e com tifo, mas eu ainda não
sabia.
Como foi sua libertação?
Os russos chegaram e libertaram o campo (em 23 de abril
de 1945). Eles me viram daquele jeito, ficaram impressionados por eu estar vivo
e disseram: "Temos de mostrar esse aqui para alguém!" Então me
limparam e me botaram num avião para Moscou. Me levaram ao Kremlin. Encontrei
Stalin e ele me perguntou se eu sabia falar russo. Eu falava um pouquinho.
Stalin me disse que eu seria bem tratado e mandou me botarem num internato em
Moscou. Eu estava muito fraco e tinha um grupo de garotos vagabundos. Eu estava
com uma roupa boa, que os russos me deram. Quando dormi, veio um mais forte e
levou minha roupa. O que eu ia fazer? Roubei a roupa de um menino ainda mais
fraco e fui embora. Achei a Cruz Vermelha e pedi para ir para a Polônia.
O senhor conseguiu?
Voltei, mas estava muito fraco. Estava bem doente, com
febre e manchas no corpo: era tifo. Fiquei meses no hospital. Quando saí da
cama, não conseguia andar. Chegou um avião dos Estados Unidos para levar uma
turma para lá, mas eu não quis ir.
Por que não?
Tinha medo de que me matassem. Queria ir para Israel, mas
acabei indo para a Alemanha. Me levaram para um internato para sobreviventes de
guerra em Landsberg am Lech, onde fiquei dois anos. Já tinha um grupo de Israel
lá, o Haganah Palmach (uma milícia). Aprendi hebraico - antes, falava polonês,
alemão, iídiche e um pouco de russo. Fizemos treinamento de táticas de guerra.
Em 1947, eu estava com 16 anos, chegou o Exodus (navio que levava refugiados
para Israel). Eu queria ficar com os que sofreram como eu. Não queria me
afastar dos judeus. Sabíamos que iríamos lutar lá e já tínhamos aprendido a
lutar na Alemanha. Já tivemos que lutar no navio, com os ingleses (em 1947, a
Inglaterra proibiu a imigração clandestina para Israel. O Exodus, com 4515
sobreviventes do Holocausto, foi o primeiro navio a receber a ordem marítima
policial, em 18 de julho. Houve combate a bordo e três pessoas morreram). Fui
mandado para uma prisão no Chipre, onde fiquei uns dois meses. Primeiro tentei
fugir dentro de um caminhão de lixo, mas me pegaram. Com 17 anos, fui solto e
consegui ir para Israel. Fui direto para um kibutz trabalhar na terra e
aprender coisas do Exército. No Exército, fui treinador de recrutas e
paraquedista. Lutamos contra os árabes, participei da Batalha do Egito. Isso foi
em 1948, por aí. A gente libertou Israel. Fiquei nas Forças Armadas até 1951.
Como foi sua participação na guerra?
Saltei de paraquedas em lugares perigosos. Uma vez, nosso
helicóptero desceu no deserto de Negev. Teve tiroteio e fui atingido, atrás da
orelha esquerda, por estilhaços de uma granada. Fiquei três meses no hospital e
sou surdo desse ouvido. Também tenho uma cicatriz na perna direita por causa de
outra granada. Em Israel, me casei. Tenho duas filhas lá, seis netos e sete
bisnetos. Trabalhei em construção, em muita coisa.
Por que o senhor veio para o Brasil?
Eu achava que tinha direito a alguma coisa lá (uma
indenização), mas eu não tinha pistolão. Pensei: "Depois de tudo o que eu
fiz, ainda preciso de pistolão?" Aí me aborreci, quis ir embora, em 1958.
Vim com uns amigos. Depois, minha mulher veio com minhas filhas, uma com 3 anos
e a outra com uns 9 meses. Moramos em Ramos (no Rio de Janeiro), mas ela não
aguentou a umidade. Tinha bronquite, quis voltar para Israel. Mas eu não podia,
né? Trabalhava como vendedor.
O que o senhor fez aqui?
Eu não falava português. Vendia roupas de porta em porta
lendo um texto. Me naturalizei brasileiro em 1963. Tive uma loja de modas em
Ipanema, depois um salão de cabeleireiro e uma butique na Gávea. Nessa época,
arranjei uma úlcera. O doutor Gazzola, um médico que alugava um quarto na minha
casa quando era estudante, me operou. Nessa operação, ele tirou aquela bala do
abdômen! Depois, a butique não andava bem. Comecei a trabalhar como motorista
de táxi nos anos 1960 e foi assim até dois anos atrás. Uma vez, fui
sequestrado. Me deram uma injeção de gasolina, me roubaram, mas não levaram o
táxi. Isso foi há uns 30 anos. Outra vez, escapei de um assalto no Flamengo me
jogando debaixo do carro. Hoje, tem uma pessoa que dirige meu táxi. Recebo uma
indenização dos alemães, uma mixaria, e outra mixaria de aposentadoria. Mas me
casei de novo aqui (com a católica Lenice, 60 anos), tive dois filhos: o
Anderson (engenheiro, 30) e a Alexandra (designer, 25).
O senhor tem algum contato com suas filhas em Israel?
Eu não tinha nenhum contato. Ela (aponta para Alexandra)
é que achou minhas filhas e foi à casa delas lá. Quando elas saíram daqui,
tentei me comunicar, mas não consegui. Fui ao consulado, pedia ajuda a quem ia
para Israel e nada. Falei com minhas filhas (Hedva, 55 anos, e Yocheved, 53)
por telefone. Fico feliz de saber que estão bem. Um dos meus netos já veio me
visitar (Alexandra explica que, na verdade, foram elas que os encontraram com a
ajuda do Museu do Holocausto de Washington).
Por que o senhor demorou tanto para contar sua história?
No táxi, jornalistas viam esse número no meu braço e
queriam que eu contasse a minha vida. Mas o meu advogado, na época, achava
melhor não para não atrapalhar as coisas com a indenização dos alemães. E antes
eu não conseguia nem contar porque me revoltava. Agora conto porque já estou no
final... Lógico que me emociono lembrando, já tive muito pesadelo com isso. Mas
não tenho mais. O que tinha que passar, passei. Perdi tanta coisa na minha
vida... Agora estou tranquilo.
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