domingo, 13 de maio de 2012

A Pele Que Habito





A Pele Que Habito (La Piel Que Habito, 2011) é uma monstruosidade cinematográfica elevada à perfeição por seu criador, Pedro Almodóvar. O filme, baseado no livro Mygale (1995), do francês Thierry Jonquet, conta a surpreendente história do Dr. Robert Ledgard (Antonio Banderas). Durante anos, ele mantém aprisionada sob seus “cuidados” uma paciente chamada Vera Cruz (Elena Anaya). Por causa da morte de sua mulher em um acidente de carro, o médico se dedica obsessivamente a experimentos cujo objetivo é cultivar uma pele que seja invulnerável contra qualquer tipo de agressão. E ele não mede esforços para alcançar seus objetivos e não tem escrúpulos ao usar Vera em seus controversos experimentos. Em sua jornada, ele ainda recebe ajuda da Marilia (Marisa Paredes), a mulher que cuidou de Robert desde o dia em que ele nasceu e hoje é sua cúmplice mais fiel. Mas quem é Vera e como ela acaba nas mãos do Dr. Legard é um grande mistério, cuja verdade pode ser mais terrível do que se pode imaginar.

É nesta atmosfera com toques noir que transcorre este thriller perturbador sobre as nuances da vingança e até onde pode chegar a mania de grandeza de um ser humano. Almodóvar faz um trabalho admirável na direção, com cenas muito bem filmadas e chocantes que agregam valor ao clima insano da trama. As complexas reviravoltas que acontecem no roteiro surgem trazendo impressionantes surpresas e a forma como o diretor lida com este mistério é de tirar o chapéu. As revelações vêm tão naturalmente que despertam um ultraje genuíno. É o tipo de filme que arranha o estômago. Almodóvar não apenas apresenta um vilão superficial a ser desmascarado no final, mas constrói sua loucura e mostra toda a tragédia que ele teve de suportar até chegar àquele estado crítico.

Antonio Banderas, que já trabalhou com o diretor em Ata-me (1990), está excelente como um cientista que não é um louco caricato e cheio de excessos, mas um cara inteligente, frio e calculista. A mente do personagem é um verdadeiro labirinto a ser percorrido pelo espectador, quase tão complexo quanto Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de O Médico e o Monstro (1886). Ele é um homem apaixonado pelo trabalho e por seus entes queridos, mas indiferente ao que vai além. Ao mesmo tempo, ele não é um simples sociopata. Ele está a serviço da ciência, dedicado a descobrir algo que vai revolucionar o mundo e está disposto a fazer sacrifícios para isto, ainda que ele não seja o sacrificado. Sua interação com Marisa Paredes torna sua personalidade ainda mais complexa e a atriz demonstra uma segurança extraordinária em cena.

Este filme é uma espécie de Frankenstein moderno e traz muitos elementos que tornaram o monstro de Mary Shelley famoso, especialmente o olhar apurado sobre as linhas tênues que separam os conceitos de bem e mal. Porém, aqui, a monstruosidade é mais sutil. A beleza que cerca a atmosfera do filme e seus personagens contrasta fortemente com os segredos macabros que eles carregam. Mesmo a violência (normalmente brutal) e os procedimentos cirúrgicos são mais incômodos do que grotescos, sem muito derramamento de sangue. Basicamente, o clima é como a pele que o médico tenta criar: deslumbrante e impenetrável, mas que esconde a feiura das camadas interiores. É quase uma reflexão sobre o nosso interior contra a vida exterior. Não há como negar que Almodóvar tem tato para lidar com as sutilezas do horror, como era no supracitado Frankenstein (1831), e com os conceitos mais mundanos e imagéticos, como era, por exemplo, na série Nip/Tuck (2003). A estranheza chama a atenção. A verdadeira natureza da trama revela as minúcias da monstruosidade, que é revelada aos poucos e, por isso mesmo, causa ainda mais impacto. A Pele Que Habito não é um filme de terror convencional. Não provoca gritos ou causa medo, mas deixa uma sensação angustiante de mal-estar. Quase como uma doença. Quase como a loucura. É o terror em sua mais pura essência.

Árvore da Vida




O Senhor O’Brien (Brad Pitt) é um pai que educa seus filhos com excessiva rigidez e, constantemente, bate de frente com a educação mais amena provida pela esposa (a belíssima Jessica Chastain). Ela desaprova este postura porque é uma pessoa mais carinhosa, que acredita no afeto para com os filhos e no amor ao próximo, enquanto O’Brien acredita que, na vida, os fortes triunfam e os íntegros demais perecem. Duas pessoas diferentes que conduzem os caminhos de três filhos até o dia em que um deles morre e eles são obrigados a rever todos os seus conceitos. Entretanto, o filho mais velho (Hunter McCracken) já está marcado pela ambiguidade de sua criação e a influência do pai e da mãe que brigam em seu interior pesam sobre sua índole, que oscila entre a raiva e a integridade. A trama acompanha as ramificações que forma a árvore que compõe a origem desta família entrecortada por momentos de pura reflexão sobre a origem do mundo e da existência dos seres, desde os organismos primitivos até os humanos.

Apesar do forte teor poético, Terrence Malick mantém uma tênue ligação entre todos os signos de sua obra, pois sempre usa a evolução do mundo e a influência atribuída a Deus na criação para aludir o estilo de vida e os conflitos (físicos e espirituais) da família. Num momento, ele lança a pergunta sobre o porquê de Deus tratar seus filhos com tanto descaso, para depois exaltar a agressividade de O’Brien para com seu filho. Do outro lado, a mãe acalenta os filhos e aquieta seus corações inspirada pela bondade que advém de suas crenças. Como ela mesma diz no começo da narrativa: “Existem duas maneiras de se viver. A maneira da natureza, e a maneira da graça”. É a relação entre pais e filhos, ora tempestiva ora compassiva. E não seria este também o significado de acreditar em algo… seja na superioridade de uma entidade sobrenatural seja na superioridade de uma figura paterna?! Qual seria realmente a diferença entre ambas?! Tudo é apresentado de forma bastante conceitual e imagética, com linhas de diálogo simples que fazem as vezes de narração. Além disso, o drama é adornado pela divina comédia da existência humana, na qual os humanos, mesmo depois de eras, ainda não foram capazes de compreender o real valor da vida e vivem apenas para sobreviver um dia após o outro. Neste contexto, somente a morte é capaz de abalar as estruturas vigentes, pois o ser humano não está pronto para as mudanças que a morte traz e, ao mesmo tempo, só é capaz de perceber que as mudanças são essenciais quando o sofrimento pela perda de um ente querido se abate sobre suas almas e lembra-lhes o quão finita é a vida.

A obra-prima encontra completude em suas nuances técnicas. A supracitada beleza visual é de um apuro estético que dá plasticidade as cenas, especialmente nas cenas referentes à criação. É impossível não pensar que uma energia vibrante e renovadora atua em todas as coisas, desde a erupção de um vulcão até o arrebentar de uma onda, independente da crença na existência ou não de uma força superior. É apenas a pura dádiva da vida. As imagens são lindas e tornam ainda mais tangível os enigmas da existência. O som enaltece o teor reflexivo, com a trilha sonora de Alexandre Desplat trabalhando em uníssono com as imagens e a serviço dos ideais do filme. A edição alterna entre momentos de ternura e de tensão da família, imprimindo expressividade aos personagens e o ritmo se mantém lento, num estilo que lembra o modo europeu de fazer cinema dramático, até que breves rompantes de dinamismo tiram o público da reflexão. A lentidão, no entanto, torna-se cansativa em alguns momentos. A primeira metade de filme é quase parada e a trama só engrena de verdade no segundo ato, quando os conflitos familiares ganham a tela.

Por fim, a última parcela desta composição é o elenco. Brad Pitt e Sean Penn, que já possuem um gosto pessoal por filmes autorais, mostram a qualidade habitual de interpretação. Pitt à medida que ganha rugas no rosto também adquire rugas de experiência. Ele se supera em cada papel e surpreende por mostrar sua versatilidade como o ríspido Senhor O’Brien. Já Penn tem uma participação menor e bem mais simbólica. Suas cenas são consequência dos acontecimentos que vivenciou com a família durante sua infância. Os destaques do longa, entretanto, ficam com Hunter McCracken e Jessica Chastain. McCracken interpreta o filho mais velho Jack, que se sente preterido em relação ao irmão mais novo, que parece mais talentoso em tudo que faz e mais respeitado por isto. Jack é a vítima dos maus-tratos do pai e, por isso, através de seus olhos, vemos um mundo agressivo, onde as cobranças são incessantes e o carinho para com os outros é sempre uma obrigação. Ele ama e odeia sua família e sua mente infantil guerreia por causa disto. Quando a maturidade vem, resta-lhe apenas a visão opressora do mundo e a solidão mesmo quando acompanhado de uma linda mulher. O ator mirim consegue expressar este eterno conflito com habilidade de gente grande. Já Chastain é a representação máxima da beleza e do carisma da produção — sua interpretação é sóbria e imponente. Sua personagem é o epíteto da árvore da vida, é o caule que se mantém firme e plácido ante os galhos inquietos que se amotinam uns contra os outros a todo instante. Ela é como uma conexão para todas as coisas que permeiam a história: pais e filhos, matéria e espírito, vida e morte, ingenuidade e malícia, fé e descrença. Ela é a contemplação encarnada.

A Árvore da Vida confecciona imagens magníficas que captam a vida como pouco se vê no cinema, uma qualidade visual que, aliás, lembra um pouco o recente Melancolia (2011). Porém, enquanto Lars von Trier ilustra a depressão e martela que o espírito humano está fadado ao fracasso, Terrence Malick abraça a compaixão e a esperança, mostrando que há sim uma chance de salvação e, sobretudo, redenção. A Árvore da Vida, como uma ópera regida e orquestrada com os mais suaves e precisos toques, é uma experiência mágica e comovente.

Alternância




Aquilo que é distante é sempre mais necessário que o que está a  nosso alcance. Especialmente as pessoas. Seus defeitos se escondem em névoas, os bons momentos compartilhados parecem mais doces que quando degustados. A ausência usa uma paleta colorida para restaurar uma obra gasta e muito pouco prima, para pendurá-la numa parede recém pintada. Dentre os ângulos, lembramos apenas dos que são dignos de habitar o Olimpo das reminiscências.

Ao nosso lado, o outro se mostra no seu estado bruto, cheio de aparas, arestas, sobras e faltas. Sem desafios, não nos provoca mais a velha obsessão da criança em desespero pelo presente que ainda não ganhou. A única coisa que realmente interessa nas pessoas é o que adornamos nelas com nossa imaginação ou é imaturidade não contentar-se com o real, mesmo que aguado? Pois  que o tempo nos ensine a amá-las, porque essa alternância de Gata Borralheira presente e Cinderela distante é frustrante demais.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Leiloado por US$ 120 milhões, quadro 'O Grito' quebra recorde em leilão



O Grito (no original Skrik) é uma pintura do norueguês Edvard Munch, datada de 1893.


Interpretação do quadro

Vemos ao fundo um céu de (cores quentes), em oposição ao rio em azul (cor fria) que sobe acima do horizonte, característica do expressionismo (onde o que interessa para o artista é a expressão de suas ideias e não um retrato da realidade). Vemos que a figura humana também está em cores frias, azul, como a cor da angústia e da dor, sem cabelo para demonstrar um estado de saúde precário. Os elementos descritos estão tortos, como se reproduzindo o grito dado pela figura, como se entortando com o berro, algo que reproduza as ondas sonoras. Quase tudo está torto, menos a ponte e as duas figuras que estão no canto esquerdo. Tudo que se abalou com o grito e com a cena presenciada está torto, quem não se abalou (supostamente seus amigos, como descrito acima) e a ponte, que é de concreto e não é "natural" como os outros elementos, continua reto.
A dor do grito está presente não só na personagem, mas também no fundo, o que destaca que a vida para quem sofre não é como as outras pessoas a enxergam, é dolorosa também, a paisagem fica dolorosa e talvez por essa característica do quadro é que nos identificamos tanto com ele e podemos sentir a dor e o grito dado pelo personagem. Nos introjetamos no quadro e passamos a ver o mundo torto, disforme e isso nos afeta diretamente e participamos quase interativamente da obra.

Leilão

Com US$ 119,9 milhões, a obra "O Grito", de Edvard Munch (1863-1944), tornou-se a pintura mais cara da história a ser vendida em um leilão, nesta quarta-feira (2), caso se cumpram as previsões de que o quadro arrecade até 150 milhões de dólares.

Em um texto publicado em seu perfil no Facebook, a Sotheby's - casa onde aconteceu o leilão, em Nova York - conta que houve uma "disputa" pela compra do quadro. "Sete candidatos lutaram por mais de 12 minutos antes de o martelo descer e estabelecer o novo recorde mundial",  diz a nota.
Antes do leilão, estimava-se que a pintura, uma das quatro versões produzidas pelo artista escandinavo e a única de propriedade privada, pudesse alcançar US$ 80 milhões.

Embora não tenha atingido as previsões mais otimistas, que batiam na casa dos US$ 150 milhões, "O Grito" chegou a valor suficiente para se colocar à frente do quadro "Nu, folhas verdes e busto", de Pablo Picasso, vendido por 106,5 milhões de dólares em 2010.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

Ler...




"Você lê e sofre. Você lê e ri. Você lê e engasga.
Você lê e tem arrepios. Você lê, e a sua vida vai
     se misturando no que está sendo lido."

(Caio Fernando Abreu)

terça-feira, 1 de maio de 2012

Dia do Trabalho


DIA DO TRABALHO

O Dia Mundial do Trabalho foi criado em 1889, por um Congresso Socialista realizado em Paris.

A data foi escolhida em homenagem à greve geral, que aconteceu em 1º de maio de 1886, em Chicago, o principal centro industrial dos Estados Unidos naquela época.



Milhares de trabalhadores foram às ruas para protestar contra as condições de trabalho desumanas a que eram submetidos e exigir a redução da jornada de trabalho de 13 para 8 horas diárias.

Naquele dia, manifestações, passeatas, piquetes e discursos movimentaram a cidade.
Mas a repressão ao movimento foi dura: houve prisões, feridos e até mesmo mortos nos confrontos entre os operários e a polícia.

Em memória aos mártires de Chicago, das reivindicações operárias que nesta cidade se desenvolveram em 1886 e por tudo o que esse dia significou na luta dos trabalhadores pelos seus direitos, servindo de exemplo para o mundo todo, o dia 1º de maio foi instituído como o Dia Mundial do Trabalho.



No Brasil, ano 1940, o presidente Getúlio Vargas instituiu o salário mínimo. Este deveria suprir as necessidades básicas de uma família (moradia, alimentação, saúde, vestuário, educação e lazer.

Em 1º de maio de 1941 foi criada a Justiça do Trabalho, destinada a resolver questões judiciais relacionadas, especificamente, as relações de trabalho e aos direitos dos trabalhadores.

Sobre intelectuais e democracia


Na situação atual, nossa principal tarefa não é imaginar mundos melhores, mas pensar em como evitar piores. O tipo de intelectual que delineia grandes horizontes idealizados e improváveis talvez não seja a pessoa a quem mais devemos prestar atenção.



por TONY JUDTT

A atividade intelectual é um pouco como a sedução. Se você for direto ao alvo, é quase certo que não seja bem-sucedido. Se quiser ser alguém que contribui para os debates históricos mundiais, é quase certo que não tenha êxito se já começar contribuindo para os debates históricos mundiais. A coisa mais importante a fazer é falar sobre as coisas que têm, por assim dizer, ressonância histórica mundial, mas no nível em que você é capaz de ser influente. Se a sua contribuição à conversa for então captada e se tornar parte de uma conversa maior, ou parte de conversas travadas também em outros locais, tanto melhor.

 Assim, não penso que os intelectuais façam bem falando sobre a necessidade de que o mundo seja democrático, ou sobre a necessidade de que os direitos humanos sejam mais respeitados mundo afora. Não que essas declarações sejam pouco desejáveis, mas o fato é que elas contribuem muito pouco, seja para a consecução do objetivo, seja para incrementar o rigor da discussão. Mas, se a mesma pessoa mostrar exatamente o que há de imperfeito na democracia e nas democracias, estará lançando uma base muito melhor para a argumentação de que a nossa é uma democracia que as outras deveriam ser incentivadas a emular. Dizer meramente que a nossa é uma democracia ou dizer que não estou interessado na nossa, mas quero ajudar a construir a sua, provoca a resposta: bem, vá em frente, conserte a sua e então talvez consiga uma plateia estrangeira, e por aí vai. Para sermos internacionais, temos primeiro que ser nacionais.

Com o que deveríamos estar nos preocupando hoje? Estamos no final de um ciclo muito longo de avanço. Um ciclo que começou em fins do século XVIII e que, não obstante tudo o que ocorreu desde então, continuou essencialmente até os anos 1990: a contínua ampliação do círculo de países cujos governantes são compelidos a aceitar algo como o regime da lei. Creio que isso foi abafado, a partir dos anos 1960, por duas expansões distintas, mas relacionadas: a da liberdade econômica e a da liberdade individual. Estes dois últimos desenvolvimentos, que parecem estar relacionados com o primeiro, são na verdade potencialmente perigosos para ele.

Vejo o século atual como um século de crescente insegurança suscitada parcialmente por uma liberdade econômica excessiva, usando a palavra liberdade num sentido muito específico, e a crescente insegurança provocada também por mudanças climáticas e Estados imprevisíveis. Como intelectuais ou pensadores políticos, é provável que nos vejamos confrontados com uma situação na qual nossa principal tarefa não é imaginar mundos melhores, mas pensar em como evitar piores. E essa é uma espécie ligeiramente diferente de situação, na qual o tipo de intelectual que delineia grandes quadros de situações idealizadas e improváveis talvez não seja a pessoa a quem mais vale a pena dar ouvidos.

Talvez nos vejamos perguntando como podemos defender direitos legais, constitucionais ou humanos estabelecidos, normas, liberdades, instituições e assim por diante. Não estaremos perguntando se a Guerra do Iraque era uma maneira boa ou má de levar democracia, liberdade, o mercado etc. ao Oriente Médio, mas sim: era um empreendimento prudente, mesmo que alcançasse seus objetivos? Pensemos no custo da opção: o potencial perdido que poderia ser utilizado para alcançar outras coisas com recursos limitados.

Tudo isso é duro para os intelectuais, a maioria dos quais se imagina defendendo e propondo grandes abstrações. Mas penso que nas próximas gerações o modo de defender e propor grandes abstrações será defender e cuidar de instituições, leis, normas e práticas que encarnam nossos melhores esforços em relação a essas grandes abstrações. E os intelectuais que se importarem com elas serão as pessoas que terão mais importância.

Timothy Snyder: Não é que o sujeito deva sair falando sobre democracia ou espalhando-a por aí, mas sim entender que se trata precisamente de uma coisa muito delicada, feita de pequenos e frágeis mecanismos e práticas. Um dos quais é garantir que os votos sejam computados.



e você observar a história das nações que maximizaram as virtudes que associamos à democracia, notará que o que veio primeiro foi a constitucionalidade, o império da lei e a separação de poderes. A democracia quase sempre veio depois. Se entendermos por democracia o direito de todos os adultos participarem da escolha do governo que vai  dirigi-los, isso foi implantado muito tarde – no meu tempo de vida, em alguns países que hoje vemos como grandes democracias, como a Suíça, e certamente, no tempo de vida de meu pai, em outros países europeus, como a França. Portanto, não devemos dizer a nós mesmos que a democracia é o ponto de partida.

A democracia está para uma sociedade liberal bem-ordenada como um mercado excessivamente livre está para um capitalismo bem-sucedido e bem regulado. A democracia de massa numa era de meios de comunicação de massa significa, por um lado, que você pode revelar muito rapidamente que Bush roubou a eleição de 2000, mas, por outro lado, que grande parte da população não está preocupada com isso. Ele teria menos condições de roubar a eleição numa sociedade liberal e antiquada do século XIX, baseada num sufrágio mais restrito: as relativamente poucas pessoas de fato envolvidas teriam se importado muito mais. Portanto, pagamos um preço pela massificação de nosso liberalismo, e deveríamos compreender isso. Não é um argumento em favor do retorno ao voto restrito ou a duas classes de eleitores, ou o que isso signifique – os informados e os desinformados. Mas é um argumento em favor da compreensão de que a democracia não é a solução para o problema das sociedades não livres.

Timothy Snyder: Mas não seria a democracia um bom candidato para um século mais pessimista? Porque ela é, creio, melhor defendida como algo que impede o surgimento de sistemas piores, e melhor enunciada como política de massa capaz de garantir que as pessoas não serão enganadas da mesma maneira o tempo todo. 


máxima de Churchill de que a democracia é o pior sistema possível, com exceção de todos os outros, encerra alguma verdade, ainda que limitada. A democracia tem sido a melhor defesa em curto prazo contra alternativas não democráticas, mas não é uma defesa contra suas próprias deficiências genéticas. Os gregos sabiam que a democracia não é muito passível de sucumbir aos encantos do totalitarismo, do autoritarismo ou do poder oligárquico; ela é muito mais passível de sucumbir a uma versão corrompida de si própria.

As democracias se corroem bem depressa; elas se corroem linguisticamente, ou retoricamente, se você preferir – é esse o argumento de George Orwell quanto à linguagem. Elas se corroem porque a maioria das pessoas não se preocupa muito com elas. Note que a União Europeia, cujas primeiras eleições parlamentares, realizadas em 1979, tiveram um comparecimento médio de 62%, está agora temendo um comparecimento de menos de 30%, embora o Parlamento Europeu hoje tenha mais importância e mais poder. A dificuldade de sustentar o interesse voluntário na questão da escolha das pessoas que vão governar você é algo bem patente. E a razão pela qual precisamos de intelectuais, bem como de todos os bons jornalistas que pudermos encontrar, é preencher o espaço que cresce entre as duas partes da democracia: os governados e os governantes.