A que postura ideal somos convidados a ter no Dia
Nacional do Historiador? Há algo de irônico nisso, algo de silencioso, de
castrado, algo de museu. A necessidade de instituir um marco também para a
categoria profissional da história parece embebida do espírito destes tempos,
em que através da memória oficial encontramos a legitimidade de nossos papéis
sociais e podemos continuar quietos, satisfeitos de nossa condição. Neste
quadro, coube ao historiador a ilusão de precisar a direção do tempo, que
fluiria do passado para o futuro, afeito à variedade classificada, protegida
dos horrores da desorientação, da incerteza, das ambigüidades e ironias que
desde sempre constituem o tempo.
Talvez seja necessário retirar da história parte do peso
de carregar um passado coerente e preciso, fundamento mais seguro das
identidades. Equivaleria a distribuir as chaves para um universo que não
precisa acabar, no qual o homem é destituído de uma posição de domínio, de um
modo de ser determinado por conjuntos de variáveis mais ou menos previsíveis,
pois que alicerçadas em colonizadas relações de unidade e identidade.
Há mais de 500 anos um enorme contingente de pessoas
caminha entre o mito do paraíso perdido e as descobertas mais fantásticas no
campo das ciências e tecnologia, da economia mundial, e da comunicação
extravagantemente massiva. A vida tem sido tecida por múltiplos processos
sociais que garantem a manutenção dessas condições, aspiração e profundo desejo
de um futuro desenvolvido e eternamente mais moderno. E neste amplo arco de um
conceito um tanto oportunista de “modernidade” consideramos os encurtamentos
geográficos e as aproximações étnicas, a estigmatização dos conflitos de
classe, raça e nacionalidade, religião e ideologia, na esperança de alcançar o
comando da própria história.
Reconhecimento
Da aventura do descobrimento humano nos séculos XV e XVI,
a inelutável sociedade “global” contemporânea, o problema do reconhecimento e
da demarcação das identidades culturais combinou-se a um desejo de modernização
social e desenvolvimento econômico a-históricos, pois que diluídos em
fragmentários caminhos distantes de qualquer referência de transformação que
marcou esses séculos de experiências. A linha reta do passado
institucionalizado chamou de civilização a exclusão política, e de tolerância
cultural, o racismo das opções modernas de inclusão.
O Ocidente tornou-se o lugar por excelência da liberdade,
desde que as diferenças identitárias estejam devidamente elencadas e
asseguradas pela lei – cujo argumento fundamental tem sido repetidamente a
História. Ao mesmo tempo, do espírito moderno de ruptura que marcou finais do
século XIX, não cultivamos atualmente qualquer referência, profundidade ou
sentido e começamos a nos chamar de pós-modernos, decretando o fim daquela
história, novamente, como se isso fosse possível. Formatamos o inconsciente
individual e o acaso histórico, o desejo pessoal de mudança e a democracia
participativa em um capítulo da história em direção a uma infinidade de novas,
atraentes e perturbadoras experiências e memórias incapazes, contudo, de nos
municiar da compreensão de quem somos e qual o nosso lugar.
No Brasil, ora discutimos no campo político a verdade
unívoca de capítulos de nossa história, comemoramos de forma perturbadora a
chegada do futuro sem demonstrar qualquer empatia pelas já antigas lutas de
classe, lutas sociais, conflitos e contradições psicológicas que constituíram
gerações tragadas por um passado de datas e monumentos, mas sem qualquer
conexão com a imagem futurista de nosso presente. O modelo ideal de sociedade
responsabiliza a agitação social e suas incertezas por um fracasso determinista
confinado às histórias contadas nas salas de aula, às bibliotecas
universitárias, aos museus e patrimônios culturais, distantes, portanto, da
ampla sensibilidade social, das ruas, do espaço público e da memória, na qual
todos os sentimentos humanos de senso de pertencimento, compreensão e
atividade, sexualidade e desejos podem ser inventados e reinventados todos os
dias de acordo com as necessidades e interesses pessoais.
Diante disso, talvez a ambigüidade do conhecimento
histórico, a consciência da incerteza do progresso, do acaso e do devir devam
ser postas em causa. Deixemos por um momento a homenagem mais problematizadora
do estudo do passado, para abrir mais espaço ao erro e a ilusão, obscurecidos
pelo desejo colonial de modernidade. Que as oportunidades de mobilidade e
transformação moral desde muito sonhadas, assim como a incansável busca de
crescimento econômico e humano não lancem nossa secularidade a categorias cristalizadas
em datas e acontecimentos. Mas que o dia de hoje seja mais uma chance de
reflexão sobre nossos vínculos emocionais com uma imensa trajetória de lutas,
diversidade e possibilidades de vida, de valores, de alternativas de futuro.
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