A atuação das mulheres na Revolução Francesa foi marcada
por uma marcha que forçou o rei a deixar Versalhes
Na história tradicional da Revolução Francesa, os grandes
personagens são homens: Maximilien de Robespierre (1758-1794), Georges Jacques
Danton (1759-1794), Jean-Paul Marat (1743-1793). Uma mulher brilha nos relatos,
porém do lado da realeza: a rainha Maria Antonieta (1755-1793). Mas a
participação feminina foi muito mais importante do que se imagina. "Sua
presença na cena política foi tolerada e até incentivada no início da
Revolução, porém reprimida em outubro de 1793, e depois novamente, de forma
definitiva, em 1795", afirma a pesquisadora Tania Machado Morin em uma
tese a respeito do assunto, defendida na Universidade de São Paulo - e um dos
raros estudos sobre o tema já publicados no Brasil.
As mulheres fundaram clubes políticos, discursaram na
Assembleia Nacional, participaram das jornadas revolucionárias. Mas, acima de
tudo, foi um grupo de 7 mil mulheres do povo que marchou 14 quilômetros de
Paris a Versalhes, sob chuva, para protestar contra a escassez de pão,
gritando: "Vamos buscar o padeiro (o rei), a padeira (a rainha) e o
padeirinho (o príncipe delfim)". A Marcha das Mulheres alcançou o objetivo
de trazer o rei Luís XVI e sua família para Paris. Poucos dias depois, a
Assembleia Nacional também se mudou para a capital.
Esse período de ativismo político foi pouco estudado até
os anos 1980, quando as comemorações do bicentenário da Revolução Francesa
impulsionaram as pesquisas sobre o tema e fizeram justiça à ação pioneira das
cidadãs revolucionárias francesas.
Influência e liderança.
Antes de 1789, só mulheres da aristocracia tiveram poder.
Depois, surgiram lideranças nas classes populares e entre a burguesia.
Os irmãos Edmond (1822-1896) e Jules Goncourt (1830-1896)
escreveram - com uma dose de exagero - sobre a mulher da aristocracia francesa
no século 18: "Ela tinha o rei da França ao seu alcance; dava ordens na
corte, mantinha as alianças políticas, a paz e a guerra, a literatura, as artes
e a moda nas dobras de sua saia. Do começo ao fim do século, o governo da
mulher foi o único governo visível e apreciável". Parte dessa descrição poderia
se aplicar a madame de Pompadour, amante do rei Luís XV (1710-1774) durante 20
anos. A partir de 1789, em meio à efervescência social e política, uma geração
de revolucionárias entrou na cena política. Muitas vinham das classes populares
e tiveram papel importante em vários momentos cruciais da Revolução (leia
abaixo).
Surgiram as primeiras vozes feministas (o termo nem
existia na época), como Olympe de Gouges (1748-1793), que escreveu a Declaração
dos Direitos da Mulher e da Cidadã, dizendo que, se a mulher tinha o direito de
subir no cadafalso, também deveria ter o de subir na tribuna. Foi guilhotinada
em 1793, acusada de se esquecer das virtudes de seu sexo. A baronesa holandesa
Etta Palm d'Aelders (1743-1799) fez discursos em defesa dos direitos políticos
da mulher, da educação feminina e do divórcio. Considerada suspeita, fugiu para
a Holanda. Théroigne de Méricourt (1762-1817) declarou que as mulheres se
armariam para mostrar aos homens que não tinham menos coragem que eles.
Pronunciada louca em 1794, foi internada num hospício feminino até a morte.
Mas foi na Marcha a Versalhes de 5 e 6 de outubro de 1789
que as mulheres irromperam na cena pública como protagonistas políticas. As
militantes causaram escândalo dentro e fora da França e medo nas autoridades,
que decretaram a lei marcial para pacificar a rebelião a força. "A marcha
marcou o início do ativismo das mulheres do povo e sua integração ao movimento
de massa revolucionário, coisa inédita na França e na Europa da época",
diz a pesquisadora Tania Morin. Em agosto de 1792, muitas participaram do ataque
ao palácio das Tulherias, em Paris, onde morava a família real desde 1789. O
acontecimento levou à destituição e prisão do rei e ao início do regime
republicano na França.
Em 1793, Claire Lacombe e Pauline Léon fundaram o
principal clube político feminino da Revolução: a Associação das Republicanas
Revolucionárias. Elas reivindicavam o porte de armas para defender a pátria dos
inimigos internos (um direito exclusivo dos cidadãos). À época, havia 60 clubes
políticos femininos ou mistos espalhados pelo país. Em outubro de 1793, todos
foram fechados e Pauline Léon passou seis meses na prisão.
Em maio de 1795 havia fome na capital. Suicidas se
atiravam no rio Sena, inclusive mães com filhos pequenos. Exasperadas pelo
racionamento de pão e pela não aplicação da Constituição democrática de 1793,
as mulheres dos bairros operários, apelidadas de "bota-fogos",
instigaram um levante popular contra o governo da Convenção Nacional. Foi a
gota d’água. A insurreição foi derrotada e as mulheres, alijadas da política
nacional. A repressão severa é a maior prova de que elas incomodaram seriamente
a ala masculina da Revolução.
Igualdade entre os sexos.
Os principais momentos da revolução e a participação
feminina
1789-1790
Mulheres escrevem numerosas cartas e panfletos pedindo
educação, treinamento profissional e igualdade para homens e mulheres perante a
lei.
1789
5 de maio: Abertura dos Estados Gerais.
14 de julho: Tomada da Bastilha. Entre os combatentes,
ficaram registrados vários nomes de mulheres.
26 de agosto: Os deputados aprovam a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão.
5 e 6 de outubro: Marcha das mulheres para Versalhes. O
rei Luís XVI é forçado a se mudar para Paris.
1790
2 de fevereiro: Surge a associação política Sociedade
Fraternal dos Patriotas dos Dois Sexos.
19 de junho: A Assembleia Nacional suprime a nobreza
hereditária, os títulos e os brasões.
3 de dezembro: Luís XVI escreve ao rei da Prússia para
pedir apoio.
1790-1791
Formação de associações políticas femininas. Os herdeiros
são declarados iguais perante a lei. É o fim dos privilégios da primogenitura
masculina.
1791
20-21 de julho: Fuga e prisão do rei em Varennes.
17 de julho: No Campo de Marte, massacre de manifestantes
contrários à restauração do rei.
3 de setembro: Aprovação da Constituição de 1791, que
inclui o sufrágio masculino censitário.
Setembro: Olympe de Gouges publica a Declaração dos
Direitos da Mulher e da Cidadã.
1792
6 de março: Pauline Léon apresenta à Assembleia uma
petição de 319 parisienses reivindicando a formação de uma guarda nacional
feminina.
20 de abril: A França declara guerra ao rei da Hungria e
da Boêmia.
10 de agosto: O palácio das Tulherias, onde morava o rei,
é invadido pelo povo.
20 de setembro: Aprovação da lei do divórcio.
21 de setembro: Fim da monarquia e início da república.
1795
20 a 24 de maio: Insurreição de Prairial, instigada pelas
mulheres, que gritam o lema: "Pão e Constituição!".
- A Convenção proíbe as mulheres de frequentar as
assembleias e de se reunir nas ruas em grupos de mais de cinco.
26 de outubro: Fim da Convenção Termidoriana e início do
governo do Diretório.
1794
4 de fevereiro: A Convenção decreta a supressão da
escravidão nas colônias.
Fevereiro e março: Agitação das operárias das oficinas de
fiação.
28 de julho: Robespierre e 22 seguidores são
guilhotinados.
Setembro: Théroigne de Méricourt é declarada louca e
internada.
1793
21 de janeiro: Execução de Luís XVI na guilhotina.
Abril: o deputado Guyomar propõe a igualdade política de
homens e mulheres. Sua sugestão não é aprovada pela Assembleia.
16 de outubro: Execução de Maria Antonieta na guilhotina.
30 de outubro: Proibição dos clubes políticos femininos.
Jornada revolucionária
Depois de um dia de marcha, negociações e violência na
madrugada, as manifestantes conseguiram trazer o rei Luís XVI a Paris
Em setembro de 1789, faltava pão em Paris. As autoridades
nada resolviam. As mulheres ameaçavam tomar as rédeas da situação. Um incidente
infeliz no palácio de Versalhes precipitou a rebelião. Em 1º de outubro,
durante uma recepção da família real a oficiais do regimento de Flandres,
oficiais teriam pisoteado aos risos a cocarda (insígnia militar) tricolor,
símbolo da revolução, e levantado brindes à cocarda austríaca, da terra natal
da rainha Maria Antonieta. Notícias e boatos a respeito da ofensa percorreram
Paris como um rastilho de pólvora. A indignação do povo estava prestes a
explodir.
Em 5 de outubro, as mulheres tomaram a iniciativa,
batendo tambores e tocando os sinos das igrejas para reunir a multidão. Mesmo
após a queda da Bastilha, o rei ainda conservava certa aura de poder divino. O
povo acreditava que sua presença resolveria a escassez. Por isso, causava
irritação o isolamento de Luís XVI em Versalhes. Além disso, era intolerável
sua recusa em assinar decretos importantes aprovados pela Assembleia Nacional,
como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
As mulheres vieram em massa para o ponto de encontro na
praça Luís XV, atual praça da Concórdia, armadas de lanças, foices, machados e
mosquetões e puxando um canhão sem munição. Escolheram Maillard, oficial da
Guarda Nacional e herói da Bastilha, para liderar a marcha. O grupo exigia a
punição dos oficiais do banquete em Versalhes, o restabelecimento do suprimento
de trigo e a presença do monarca em Paris. Exaustas mas vitoriosas, as mulheres
do povo voltaram para a capital acompanhando a família real e trazendo a
promessa de providências para a crise do pão. Como disse o escritor Jules
Michelet (1798-1874): "Os homens tomaram a Bastilha, as mulheres tomaram o
rei".
A ida
Reunidas e armadas, as manifestantes partiram na direção
de Versalhes
1. Concentração
Uma multidão se concentra em frente ao Hotel de Ville,
sede da prefeitura de Paris à época, e denuncia o prefeito Bailly por
corrupção. O grupo é formado por mulheres do povo: vendedoras, lavadeiras,
costureiras, artesãs.
2. A Marcha começa
Depois de tomar armas no Hotel de Ville com a ajuda de
homens, o grupo se dirige à praça Luís XV, atual praça da Concórdia. A massa
aumenta ao longo do percurso, atraindo militares, operários e gente da
burguesia. Dali, todos partem para Versalhes, a fim de falar com o rei e a
Assembleia.
3. Chegada a Versalhes
Depois de 14 quilômetros debaixo de chuva, 7 mil mulheres
acompanhadas de soldados e populares se concentram nos portões do palácio. O
grupo conta com o apoio da Guarda Nacional. O rei, que estivera caçando de manhã,
fora avisado da manifestação e estava no palácio.
4. Mulheres na Assembleia
Parte das manifestantes se dirige à Assembleia Nacional,
ao lado do palácio. Os deputados são interrompidos, as mulheres tomam a palavra
e uma delas discursa da tribuna. Elas forçam a aprovação de medidas para
diminuir o preço do pão.
5. Desmaio diante do rei
Doze mulheres vão ao palácio pedir ao rei que resolva a
falta de pão. A porta-voz do grupo, Louison Chabry, de 17 anos, fica tão
emocionada diante de Luís XVI que só consegue dizer "pão!" e desmaia.
O rei a socorre paternalmente. Louison entra revolucionária e sai monarquista.
6. Tentativa de fuga
Luís XVI manda preparar as carruagens, reúne a família e
tenta fugir pelos fundos. Membros da Guarda Nacional dizem a ele que não podem
garantir sua segurança fora do palácio. Impedido de sair, ele volta para a
residência.
7. Declaração assinada
Pressionado pelos gritos que vêm de fora e apreensivo com
a iminente chegada de 15 mil guardas nacionais, o rei enfim capitula: assina a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
A volta
Com o rei a caminho da capital, o protesto se transformou
em festa
8. Invasão e morte
Durante a noite, a população invade o palácio e ruma para
os aposentos da rainha Maria Antonieta. Ela foge por uma passagem secreta
direto para quarto do rei. O incidente provoca a morte de dois guardas.
9. O rei fala com o povo
Acompanhado da rainha e do comandante La Fayette
(1757-1834), o rei se apresenta no balcão para os mais de 30 mil manifestantes
que exigiam sua presença em Paris. Acuado, Luis XVI cede, com a condição de ser
acompanhado pela rainha e pelos filhos.
10. Retorno a Paris
Depois de uma madrugada tensa, a família viaja na
carruagem real, em meio a mulheres sentadas em canhões, manifestantes cantando
"Viva o rei, viva a nação" e duas cabeças decapitadas em pontas de
lança. Da procissão fazem também parte 100 deputados, guardas nacionais e
carroças de trigo.
11. O cortejo real na capital francesa
Na chegada, Luís XVI recebe as chaves da cidade do
prefeito Bailly e fala ao público do balcão do Hotel de Ville. Depois ele se
instala no palácio das Tulherias, um espaço muito menor que Versalhes e que
estava abandonado havia 100 anos. Duas semanas depois, o preço do pão cairia.
Post-Scriptum
Por Tania Machado Morin*
Legado escondido
O exemplo das revolucionárias só foi resgatado depois da
Segunda Guerra
Uma patriota da cidade de Besançon declarou que as
mulheres preferiam os elevados ideais da Revolução às trivialidades do amor.
Imbuídas dos princípios de liberdade, justiça e igualdade contidos na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o entusiasmo daquelas mulheres
era sincero, apesar de não terem oficialmente nenhuma das prerrogativas da
cidadania, como o direito ao voto e às armas. A ruptura revolucionária abriu
espaços inéditos de expressão política a um grupo social antes excluído deles:
as mulheres do povo, que estavam mais preparadas do que se imaginava para
ocupá-los. Pressionadas pelas circunstâncias, elas saltaram da política de
bairro para a cena nacional ao se dirigirem às mais altas instâncias de poder
em outubro de 1789: a Assembleia Nacional e o rei. Na sede do Legislativo,
falaram de igual para igual com os deputados, subvertendo a ordem hierárquica
tradicional. Ali nasceram as militantes francesas. Tendo combatido, não queriam
ficar à margem dos acontecimentos.
As autoridades pensavam diferente: era preciso
transformar aqueles seres políticos em esposas e mães dedicadas à família. Em
1793, uma lei estipulou que as "patriotas de outubro" teriam lugar
especial nas cerimônias cívicas, durante as quais deveriam tricotar pacificamente
na companhia dos maridos e filhos. A moral republicana exigia uma divisão clara
entre papéis masculinos e femininos. Na Revolução, mulheres de todas as classes
desempenharam com orgulho a função materna, agora acrescida de uma dimensão
política e patriótica. Não era pouco: sua missão era educar os futuros heróis
da nação. As militantes não viam incompatibilidade entre a vida política e a
doméstica. A pátria era uma extensão da família. Mas os líderes jacobinos não
queriam compartilhar o espaço com as mulheres, e a vocação materna foi a
justificativa para a exclusão. Entretanto, as razões políticas não foram menos
importantes para o silenciamento de adversárias estridentes que instigavam
rebeliões populares e ameaçavam o poder.
O que restou de toda aquela experiência revolucionária?
Os atos de cidadania femininos foram varridos do mapa até meados do século 19.
O exercício pleno dos direitos cívicos imaginado pelas patriotas só se
materializou na França após a Segunda Guerra Mundial. Mas as lutas pela
cidadania do início da Revolução inspiraram as futuras gerações. A Sociedade
das Republicanas Revolucionárias foi o protótipo dos clubes políticos femininos
que surgiram na revolução de 1848. Como salientou a historiadora americana
Harriet Branson Applewhite, depois da Revolução Francesa, qualquer planejamento
de guerra incluía pensões para as viúvas ou esposas de mutilados de guerra,
uniformes e provisões para maridos e filhos no exército, oficinas de trabalho
para as mães e esposas de combatentes.
A Revolução acentuou o papel das mulheres como barômetro
das crises sociais. Elas tinham se habituado a ir às galerias das assembleias
exigir providências se suas reivindicações fossem negadas. Mas não se pode
falar em continuidade entre as revolucionárias e as feministas contemporâneas.
Separa-as o século 19, marcado pela profunda desigualdade política, social e
jurídica entre os dois sexos. Os tratados médicos do fim do século 18 apontaram
uma subalternidade orgânica no gênio feminino, condenando-as a uma espécie de
menoridade vitalícia. Tal é o fundamento científico da subordinação da mulher
ao homem no Código Civil de Napoleão (1804). Essa legislação reafirmou a
autoridade paterna, reinstituiu a supremacia marital e tornou o divórcio mais
punitivo para a esposa que para o marido. A teoria da domesticidade e da
debilidade física e mental da mulher custou ao sexo feminino a relativa
liberdade de que desfrutou nos primeiros anos da Revolução, sepultando por um
século os sonhos políticos das mulheres livres de 1793. A marcha das mulheres
foi longa e acidentada, e o legado das revolucionárias só foi resgatado pela
geração das feministas do pós-guerra.
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