Quem vive o cotidiano da sala de aula sabe que não é
exagero afirmar que os alunos brasileiros do ensino médio, ou mesmo os que
chegam à universidade, praticamente desconhecem a História da América Latina.
Esse distanciamento entre o Brasil e os demais países latino-americanos se deve
em parte ao fato de a tradição cultural brasileira estar profundamente voltada
para a Europa. Cultivado desde os tempos coloniais, o fascínio pela
“civilização do Velho Mundo” ainda tem forte apelo na sociedade brasileira dos
nossos dias.
Historicamente, muitos fatores contribuíram para a
construção desse fosso. As áreas de colonização portuguesa e espanhola
suportaram rivalidades entre suas metrópoles que acabaram por traçar limites
não apenas geográficos, mas também culturais, políticos e sociais. Mesmo após
as independências, ao longo do século XIX, as diferenças se mantiveram,
especialmente pela escolha de regimes políticos – enquanto o Brasil se
configurou como uma monarquia, os países hispânicos deram origem a diversas
repúblicas.
Mas as últimas décadas trouxeram expressivas mudanças nas
relações entre o Brasil e os demais países da América Latina. As várias facetas
da integração regional e latino-americana têm sido intensamente discutidas e
ganharam destaque no cenário político brasileiro, especialmente após a
constituição do Mercosul (zona de livre comércio da qual fazem parte Brasil,
Argentina, Paraguai e Uruguai). Este é
um momento privilegiado para se ampliarem no Brasil o ensino e a pesquisa da
História da América Latina. O paralelismo que encontramos nos grandes temas
históricos das duas Américas – a portuguesa e a espanhola – permite indagações
comparativas que podem provocar uma reflexão inovadora sobre a própria
historiografia brasileira.
Uma comparação interessante pode ser feita entre duas
pinturas históricas que retratam dois processos de independência: a do Uruguai
e a do Brasil.As fortes vinculações com a Europa durante a segunda metade do
século XIX fizeram com que vários artistas do Novo Mundo – brasileiros,
uruguaios, argentinos e mexicanos – fossem estudar no Velho Continente, onde
aprenderam novas técnicas e se familiarizaram com as correntes artísticas em
voga, muitas vezes patrocinados por seus respectivos governos. Mas, de volta à
terra natal, o cenário político e o ambiente acabaram impondo a questão
nacional a esses artistas, que então dirigiram seu olhar para dentro de suas
sociedades, interrogando-se sobre sua história e suas peculiaridades. Como
resultado, produziram interpretações sobre os acontecimentos considerados
primordiais naquele momento, como a chegada dos europeus à América e os processos
de independência política.
No Brasil, Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905)
pintou o quadro “IndependênciaouMorte” ou “OgritodoIpiranga”, em 1888.Às
margens do riacho do Ipiranga, D. Pedro, montado a cavalo, levanta a espada e
proclama a Independência do Brasil, bradando: “Independência ou Morte!”. Seu
gesto é saudado pela guarda, vestida em trajes de gala, e bem à sua frente, um
cavaleiro arranca da farda o laço vermelho e azul que simbolizava a união entre
a Colônia e a metrópole. Vinda do alto, uma luz esplendorosa ilumina D. Pedro.
O único homem que não faz parte da comitiva oficial – um caipira, puxando um
carro de boi – está apartado da cena principal e assiste a tudo com admiração e
surpresa. É o “povo”, praticamente ausente nessa representação e cujo papel não
é nem mesmo de coadjuvante, mas sim de um mero espectador.
Já o uruguaio Juan Manuel Blanes (1830-1901) havia
pintado, em 1877, “OJuramentodos33Orientais”.A obra retrata o grupo de homens
liderado por Juan Antonio Lavalleja (1784-1853) e Manuel Oribe (1792-1857) que
se lança à reconquista militar da Província Oriental, nesse período
incorporada, com o nome deCisplatina, ao território brasileiro.O acontecimento
marca, na história do Uruguai, o início simbólico da chamada Cruzada
Libertadora, que levará à Independência, a ser proclamada em 25 de agosto de
1825.
Na tela, Lavalleja empunha a bandeira dos 33 orientais –
branca, azul e vermelha, com os dizeres Libertad o Muerte – acompanhado por
Oribe, com o chapéu na mão, ambos demonstrando o mesmo entusiasmo e disposição
dos homens que estão à sua volta. A cena se abre como num leque, personalizando
os principais atores e caracterizando as figuras secundárias, como a do gaúcho
ajoelhado, em seus trajes costumeiros, bem à frente. Um clarão os ilumina e
parece brotar da terra, dando dramaticidade e valorizando a determinação e a
confiança do grupo. A pintura está concebida de tal forma que os dois líderes
não podem ser separados de seus comandados. Colocados no mesmo plano, formam um
grupo político coeso, movidos pela mesma causa.
Tanto Juan Manuel Blanes quanto Pedro Américo escreveram
textos de reflexão sobre a criação e a elaboração de seus quadros. Nestes
relatos, há um ponto em comum: ambos afirmaram que não espelhavam exatamente a
verdade histórica, pois as necessidades essenciais da construção artística
precisavam ser levadas em conta.
Pedro Américo afirmava que visitara o local do “Grito” e
realizara extensas pesquisas, mas que algumas mudanças se faziam necessárias: o
riacho do Ipiranga foi incorporado ao quadro; a cor dos laços da farda foi
mudada de branco e azul para vermelho e azul, para se adaptar melhor à
composição de cores; a casa e as árvores ao redor foram inventadas, assim como
o declive do terreno. O objetivo era “restaurar com a linguagem da arte um
acontecimento que todos desejam contemplar revestido dos esplendores da
imortalidade”. Ele argumentava que todos tinham que estar de acordo com aquela
época “cerimoniosa e brilhante”, desde os cavalos até os uniformes da Guarda de
Honra. O cavalo de D. Pedro, que segundo alguns era um asno baio, foi pintado
como sendo um zaino escuro, e seu cavaleiro deveria ser pintado de acordo com o
caráter do príncipe: “propenso às pompas do trono”, e não refletindo as
perturbações gástricas que sofria na ocasião.
Blanes achava importante fazer referência aos 33 orientais
que iniciaram a luta pela independência. Pelas pesquisas atuais, não se sabe ao
certo se esse número é exato. Mas a escolha do pintor está diretamente
vinculada à sua filiação à maçonaria. Para os maçons, o número 3 é perfeito,
compondo os três lados do triângulo, outro de seus símbolos. No quadro de
Blanes, a vestimenta também é significativa, mas numa visão bastante diferente,
já que ele dizia que “nossos pais não pensaram em fundar o orgulho nacional com
seus trajes, e sim com seu valor e seu sangue”. Para ele, as roupas descuidadas
de alguns dos heróis deviam ser assim retratadas, porque “atos de coragem e
patriotismo não podem decorar-se previamente”. Então, a dignidade e a beleza
seriam mostradas em sua simplicidade e de acordo com as particularidades dos
costumes uruguaios.
As virtudes – coragem e dignidade – eram muito
valorizadas pelo republicano Blanes, e por isso os trajes eram meros acessórios
que não deviam ofuscar o brilho da cena histórica. Mas Pedro Américo pensava
diferente: as aparências – a pompa, os trajes – eram indispensáveis, faziam
parte da imagem da monarquia e integravam seu significado. Da mesma forma, a luz, que na pintura do
brasileiro vem do alto, na do uruguaio surge da terra. Ao comparar os dois
quadros, é possível então afirmar que as escolhas pictóricas de Pedro Américo
estão relacionadas ao imaginário simbólico da monarquia e que Blanes foi
inspirado pelo ideário republicano, isto é, a perspectiva de que o poder
político emana do povo e não da Divina Providência; que as pessoas nascem
iguais, não cabendo privilégios à aristocracia; que as virtudes individuais são
o sustentáculo do regime; que Estado e Igreja devem ser separados.
Bastante reveladoras são também as primeiras exibições
dos dois quadros. Pedro Américo expôs “IndependênciaouMorte” pela primeira vez
em Florença, em 1888, em “uma inauguração solene”, com a presença de D.Pedro II
e da imperatriz, das rainhas da Sérvia e da Inglaterra e de vários membros da
aristocracia europeia. O tom solene da cerimônia se adequava ao lugar escolhido
para a exposição, a Academia Real de Belas Artes de Florença. Já Blanes expôs
seu quadro pela primeira vez em seu próprio ateliê, no dia 31 de dezembro de
1877, com a presença do presidente da República e de outras autoridades. O quadro
ficou disponível por um mês para a visitação de todos os cidadãos que
desejassem contemplá-lo, provocando “uma comoção pública sem precedentes”,
comprovada pelo impressionante número de 6.237 visitantes.
Além de simbolizarem as independências dos dois países,
as duas pinturas históricas foram elaboradas por homens envolvidos com as
discussões de seu tempo sobre arte, nação e política. As telas revelam as
escolhas de cada um e demonstram que as afinidades com o regime monárquico, no
caso do Brasil, ou com o regime republicano, no caso do Uruguai, indicam
percepções diferentes sobre a independência de cada país.
É certo que o conhecimento sobre a História do Brasil
pode ser enriquecido nas salas de aula quando direcionamos o olhar dos alunos
para o horizonte ampliado da América Latina. E cruzando as fronteiras,
descortina-se o rico – muitas vezes inimaginável – panorama da circulação de
pessoas, de ideias, de livros, de proposições políticas e de projetos
econômicos pela região.
Maria Lígia Coelho Pradoé professora da Universidade de
São Paulo e autora de América Latina no Século XIX. Tramas, Telas e Textos
(Edusp, 1999).
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