A Fúria dos Reis, publicado aqui pela Editora
Leya, é o segundo livro dessa grandiosa saga. Como todo bom segundo livro,
consegue desenvolver as várias ramificações de sua história criadas
anteriormente, aprofundar personagens já bastante tridimensionais e outros até
então pouco explorados, consertar problemas do passado e arrumar problemas
novos. E em meio às suas 650 e poucas páginas, A Fúria dos Reis consegue também
padecer do mal dos segundos livros — é sensacional, mas não é tão épico ou
impactante como o primeiro
A saga continua de onde o primeiro livro, A Guerra dos
Tronos, parou. Após a morte do Rei Robert Baratheon e a execução de Eddard
Stark, uma guerra civil instaurou-se em Westeros. Surgiram cinco reis, todos
lutando para tomar o Trono de Ferro, agora sob o domínio do herdeiro de Robert,
o odioso Joffrey Baratheon.
Dentre os inimigos do novo rei estão os irmãos de Robert,
Stannis e Renly. Stannis é um homem duro e amargurado, que viveu boa parte da
vida exilado em Pedra do Dragão e acabou rendendo-se aos subterfúgios da
perigosa Melisandre, a Sacerdotisa Vermelha. Renly não passa de um moleque
brincando de guerra, mas por ser carismático e justo, consegue apoio da Casa
Tyrell e forma o maior exército dentre os reis ascendentes. Noutro vértice está
Robb Stark, o filho mais velho de Eddard, que foi proclamado Rei do Norte e
deseja mais a cabeça de Joffrey do que sentar no Trono de Ferro. No Norte, os
homens da Patrulha da Noite enfrentam forças sombrias que se erguem além da Muralha
e precisam lidar com o poder crescente do Rei Além da Muralha, o renegado Mance
Rayder.
Do outro lado do mar, Daenerys Targaryen continua sua
jornada para reunir forças e voltar a Westeros. Como Khaleesi dos selvagens
Dothraki (que ainda a seguem), Dany pretende reconquistar o trono que ela
acredita ser dela por direito, com fogo e sangue. Mas precisa passar ainda por
muitas provações — a maior delas, defender seus dragões recém-nascidos, agora
alvo de cobiça por todos os que cruzam o caminho da jovem Targaryen.
George R.R. Martin, o ilustre autor dessa ilustre série,
continua maldoso… Ou, como diria uma amiga minha, um Mau Velhinho. Todavia, o
cara mantém domínio excepcional sob todos os escopos de sua intrincada trama.
A quantidade enorme de personagens e arcos trabalhados no
livro leva a basicamente três histórias principais, margeadas por diversas
sub-tramas exaustivamente detalhadas. Aqui, no maior mérito do autor, reside
também sua maior falha. Martin é um escritor de mão cheia, que às vezes
justamente enche demais a mão e perde um pouco o fio da meada. Como ele mesmo
diz, o diabo está nos detalhes — e isso é ainda mais correto nesse segundo
livro do que foi no primeiro.
Eu gosto dos detalhes, gosto prazerosamente de desbravar
as descrições dos cenários e das vestimentas e dos festejos, contudo, há de se
convir que em alguns momentos, o velhinho escreve, escreve, escreve e não chega
a lugar algum. E depois de 200 páginas isso começa a irritar.
Um exemplo é o arco do menino Bran Stark, que por estar
aleijado fica preso em Winterfell enquanto seus irmãos estão espalhados pelo
mundo. Bran torna-se responsável pelo reino e cicerone dos netos de Walder
Frey, enviados para Winterfell como parte do acordo feito por Robb com o Senhor
da Travessia para atravessar as Gêmeas durante a Guerra dos Cinco Reis. Durante
páginas e mais páginas intermináveis, a história de Bran resume-se a ser
instruído sobre como cuidar do reino e do povo (e achar isso um saco), aturar
as birras com os Frey, aturar as birras com o irmão mais novo Rickon, e aturar
mais um pouquinho as birras com os Frey (chato assim!). E depois de toda essa
birra infernal, chegamos a conclusão que essa parte da história não serviu
efetivamente pra nada. O negócio com o garoto só começa a andar lá para o final
e, mesmo assim, quando fica interessante, o livro acaba. IRRITANTE. Pra não
dizer que Bran é um completo desperdício, a relação dele com a bárbara Osha e a
habilidade especial dele cavalgar o lobo Verão enquanto sonha são muito
relevantes — porém menos desenvolvidas do que poderiam por causa dos Frey e de
Rickon (aliás, que molequinho chato esse Rickon).
Apesar desses deslizes, até compreensíveis se levarmos em
conta a quantidade de história, Martin oferece também momentos ímpares, como a
forma como ele brinca com os vários pontos de vista de que dispõe, mostrando a
Guerra dos Cinco Reis sob todas as perspectivas possíveis, tanto pessoais como
geográficas.
Mesmo Daenerys, que vive em outro continente, não fica
completamente alheia sobre o que está acontecendo em Westeros e a percepção
dela da coisa toda é tão ingênua, tão infantil, mas tão determinada, que você
não consegue ficar alheio a ela. Assim como acontece com Bran, a parte dela
demora a engrenar, porém, é mais interessante, porque a personagem é mais
carismática, mais forte. Daenerys é o despertar da alta fantasia num mundo até
então desprovido da mística fantástica. KHALEESI. MÃE DOS DRAGÕES. Ela ainda
vai tomar o que é dela com fogo e sangue, pode esperar. De longe, Dany é uma
das personagens MAIS PROMISSORAS da saga.
De volta a Westeros, Martin coordena seus pontos de vista
pra mostrar todas as nuances mesquinhas de uma guerra, especialmente quando
temos que lidar com um sujeitinho desprezível chamado Joffrey. O Rei Menino é
tão bonito quanto sádico — seguindo as características clássicas da Casa
Lannister — e é um adolescente brincando de ser rei (mais do que o Renly). É
impressionante como ninguém consegue controlá-lo, nem a própria mãe Cersei, que
aos poucos perde seu poder como regente por causa da incapacidade de contrariar
os destemperos do filho.
Toda essa impulsividade é apresentada pelo autor como
consequências da guerra. Há um momento especialmente genial no livro quando
Joffrey sentencia um homem à morte com tanta raiva que se corta no Trono de
Ferro (que é construído de lâminas derretidas e fundidas). Ele se corta com sua
maior arma, uma amostra de como a guerra não foi feita para tolos irascíveis
nem crianças mimadas. Martin pode não nos fornecer a redenção de ver o mais
infame personagem de sua saga cair perante espadas, mas é tão satírico ao
representá-lo que nos presenteia com a ideia de um rei indigno ferido por seu
próprio trono.
Pra sorte de rei infantil, apesar de tudo, há o lado dos
que agem com frieza numa guerra. E no jogo dos tronos, Cersei Lannister domina.
Ela pode não ter força contra Joffrey, mas não perde o charme e a língua
afiada. QUE MULHER FODA. Cersei impulsiona todas as maquinações e intrigas por
trás do enredo. Por mais que o filho-da-puta do Varys esteja lá dando azar, é
ela quem manda, e usa todas as armas que tem para isso — a maior dela fica
entre as pernas, como ela mesma deixa claro. Cersei só não é tão bem-sucedida
porque tem que enfrentar um rival a altura, ele mesmo, o MELHOR PERSONAGEM de
todos, o MEIO-HOMEM, Tyrion Lannister.
Poucas crias da literatura conseguem ser tão apaixonantes
quanto Tyrion. George Martin não se priva de ironizar seus próprios
antagonistas por dentro, esbravejando ferozmente que aparência significa NADA
perto da inteligência, principalmente em situações políticas ou belicosas. Mais
do que isso, o autor fundamenta seu mais expressivo personagem e nos deixa de
joelhos perante ele. Sim, porque se você não se curva ao Meio-Homem, você é um
tolo. Como resultado, Tyrion tem os melhores arcos, as melhores ideias, as
melhores falas, os melhores companheiros, os melhores momentos, as melhores
atitudes, os melhores romances. E a forma como Tyrion contorna os planos de
Cersei é de bater palmas.
O anão ainda ganha a oportunidade de experimentar a febre
da batalha, um momento de violência e glória que se mostra a maior cartada de
Martin em A Fúria dos Reis. A guerra para proteger Porto Real é morna, dividida
em muitos pontos de vista que fazem com que o acontecimento perca seu potencial
épico. Mas, nos últimos instantes, Tyrion toma a frente. Comanda a porra toda.
E PUTAQUEPARIU MEIO-HOMEM. Pronto, George Martin nos faz torcer para os
Lannister ganharem. Nós torcemos pros vilões. PROS VILÕES.
Sério, manipular as emoções de uma história dessa forma é
pra poucos. Na verdade, nesta segunda parte, Martin consegue tornar seus
personagens tão mais humanos que fica impossível estabelecer maniqueísmos como
heróis e vilões. Em A Fúria dos Reis, cada um tem sua motivação para lutar,
trair, matar ou morrer. Os personagens têm códigos distintos de conduta e moral
e são todos complexos, expostos em suas minúcias em cada capítulo ponto de
vista. Nesse quesito, cada detalhe vale a pena. Porque você se identifica com
eles.
Martin é assertivo até mesmo para lidar com questões
delicadas do universo feminino, como quando Sansa Stark sangra e percebe que
pode dar filhos a Joffrey, de quem ela está noiva, mas de quem ela também tem
mais medo. Sansa aos poucos desabrocha e amadurece, torna-se uma personagem
infinitamente mais interessante do que era no primeiro livro, e ainda assim
mantém o ar de menina inocente, com um toque de delicadeza feminina raro de se
ver nas mãos de um autor do sexo masculino. É fantástico ver como o otimismo e
a credulidade de Sansa vão aos poucos sendo minados e em como ela tenta extrair
força disso. Curiosamente, num outro extremo, vemos a outra manifestação da
força feminina do livro, Arya Stark. MINHA PERSONAGEM PREFERIDA sofre pra
caramba nessa parte da história. Infelizmente, Arya também demora a engrenar
nesse livro. Mas, quando acontece, a menina assume uma postura mais prática e
brutal, e diferente de Sansa reage. Quando Arya parte para ofensiva,
transforma-se no Fantasma de Harrenhal. E quando ela espertamente engana um
soldado e corta o pescoço dele com uma faca finalmente vemos porque Arya é
ARYA. UMA STARK. A MELHOR STARK.
No mais, temos aos capítulos de Catelyn Stark, que
amadurece como mãe e conselheira, mas que também continua com o péssimo hábito
de estar no lugar errado na hora errada, o que só fode a vida dela; Sor Davos
Seaworth, ex-contrabandista que virou cavaleiro de Stannis, um personagem
promissor, que ainda não teve todo o seu potencial explorado e pode ganhar
ainda mais terreno (ou mares) nos próximos livros; Theon Greyjoy, protegido da
Casa Stark que ganha mais destaque nesse livro, mas demonstra ser apenas um
menino fraco e mimado que só faz merda; e Jon Snow, que continua tentando
encontrar seu lugar no mundo e, apesar de crescer na Patrulha da Noite, termina
com uma possibilidade realmente intrigante para seu futuro. Sim, eu acredito
firmemente que o destino de Jon Snow é tomar o lugar de Mance Rayder e
tornar-se o sexto rei, o Rei Além da Muralha. E isso seria ÉPICO.
Aliás, divagando um pouco. Jon e Daenerys são os
personagens mais deslocados de toda a saga. Até agora são os únicos que se
mantêm mais distantes das intrigas políticas e guerras do mundo. São parte dos
fatos, mas minimamente atrelados a eles. PORÉM, são os que parecem mais
envoltos pela jornada de crescimento e descoberta dos heróis, uma jornada que
deve levá-los ao ápice da saga. Talvez até mesmo juntos. Muitos se perguntam se
há protagonistas na história de George Martin. Sim, há. São eles dois. O
bastardo e a exilada. Aqueles que podem mudar o mundo como é visto nesse
segundo livro. Que podem tornar-se Rei do Norte e Rainha de Westeros. Os
verdadeiros reis. Jon e Daenerys. Gelo e Fogo.
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