JOÃO MARCOS COELHO , ESPECIAL PARA O ESTADO
O Estado de S.Paulo
A primeira vez que o coelho Ismael - único entre 52 irmãos escolhido pelo pai Maltese para lhe passar todos os seus conhecimentos - ouviu os sons que vinham da sala, ficou "preso de encantamento". "Era um som surpreendente, que nunca antes tinha ouvido e que, entre todos os sons que eu conhecia, só me fazia lembrar um pouco o som do ribeiro correndo entre as pedras e as raízes das plantas. Mas este era um som mais harmonioso e profundo, que ora parecia alegre ora parecia triste."
Ao registrar o encontro entre o coelho e o adoentado Frédéric Chopin tocando um de seus noturnos ao piano, que renderia uma insólita amizade graças à habilidade do animalzinho de entender a linguagem dos humanos, o escritor português Miguel Sousa Tavares define de modo simples a essência da música. Pois sua maior qualidade é o fato de ser imediatamente acessível. O livro Ismael e Chopin visa ao público infanto-juvenil, mas é certeiro em suas reflexões sobre a natureza da música. Até parece que Tavares leu uma frase surpreendente do poeta italiano Giacomo Leopardi. Em plenos anos 1820, Leopardi escreveu que "o princípio da música e de seus efeitos não pertence à teoria do belo, mas é assunto de cheiros, gostos e cores, e assim por diante... por isso não surpreende que selvagens e até animais tenham prazer quando ouvem música". Entendê-la no sentido mais básico, raciocina Charles Rosen em seu livro Music and Sentiment, significa "simplesmente gostar dela quando você a ouve". A identificação que faz Leopardi da arte da música com a de cozinhar e a alquimia dos perfumes, completa Rosen, "implica que a música atende aos mais básicos e menos intelectuais instintos humanos".
Numa de suas excursões pelo mundo à sua volta em busca de conhecimento, o coelho Ismael conversa com a árvore Eternidade, que lhe pergunta: "Devem ser coisas bem diferentes, a música e o mar? É como se comparasses a lua com o vento. De qual gostas mais?". O coelho é sincero: "Mais do que tudo, gosto da música. Mas não me pergunte por quê!". O problema e a magia da música existem porque ela tem uma gramática e sintaxe riquíssimas e ao mesmo tempo vocabulário ambíguo. Por isso mesmo, diz Rosen, "quando quer chegar perto da sutileza e ressonância emocional da música, a linguagem recorre aos métodos poéticos".
Tavares diz no pósfácio que o livro nasceu num fim de tarde quando, no terraço de uma casa no campo, ouvia o filho pianista. "O som chegava cá fora por uma janela aberta quando vi um coelho bravo que tinha correndo e subitamente parou ao ouvir a música e ali ficou, estático, a ouvi-la."
A segunda reflexão chave do livro é daquelas essenciais, que divide há séculos os estudiosos. Para que serve a música?, pergunta Ismael ao pai, logo depois de ouvir Chopin ao piano pela primeira vez. A resposta de Maltese é antológica. "Pois isso é que é fantástico: se pensarmos bem, a música não serve para nada. De todos os sons da natureza, é o único que não se sabe para que serve. (...) Não serve para nada: só para, ouvir. E o que é extraordinário é que tenham sido os homens a inventar a música."
A música, sobretudo a instrumental, não serve para nada e ao mesmo tempo serve para tudo. Por isso Igor Stravinski afirmou que a música é apenas som em movimento, não quer dizer nada além de sons. Mas provoca sentimentos, sensações.
Beethoven, sabe-se, instaurou o primado da música instrumental de modo contundente. Um episódio pouco conhecido, ressaltado pelo pesquisador Maynard Solomon, dá conta de que ele demorou semanas para visitar, em 1804, uma de suas raras alunas de piano, Dorothea von Ertmann. Ela perdera seu filho de 3 anos e passou semanas com o choro travado. Beethoven entrou e anunciou: "Vamos nos falar agora por meio de sons". Tocou por mais de uma hora. Segundo uma testemunha, a música fez Dorothea finalmente conseguir chorar. Retirou-se em silêncio, enquanto ela soluçava. Afinal, a música é muito mais precisa neste universo do que a linguagem, porque mexe com nossos instintos.
A música nasceu antes do homo sapiens e sobreviverá a ele. Ao despedir-se do coelho Ismael entregando-lhe uma partitura de um de seus noturnos, Chopin lhe diz: "Quero que tu a guardes e um dia os filhos dos filhos dos teus filhos hão-de entregá-la a alguém que finalmente há-de ouvir e dizer ao mundo que encontraram uma nova música de Chopin (...) nesse dia, tu e eu estaremos mortos há muito tempo. Mas a música, não".
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