segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A Revolta das Chibatas

Em 1910 a população brasileira era de 23 milhões de habitantes, sendo a classe operária perto de 160 mil indivíduos. Os demais trabalhadores viviam nas zonas rurais, e os negros, bem os negros não viviam, sobreviviam – ainda marginalizados 22 anos depois da abolição da escravatura. A população negra não tinha terra para plantar, tinha pouquíssimos direitos, eram discriminados, não eram integrados ao mercado de trabalho, sendo que boa parte deles se alistava, notadamente na Marinha do Brasil, que os aceitava como mão de obra farta e barata. Nessa época, qualquer “pecado” de marujo, como levar uma garrafa de aguardente a bordo, era duramente punido com castigos físicos, que embora já tivessem sido abolidos na Proclamação da República, foram restabelecidos um ano depois.
 “Faltas leves devem ser punidas com prisão a ferro na solitária, por um a cinco dias, a pão e água; faltas leves repetidas, idem, por seis dias, no mínimo; faltas graves, vinte e cinco chibatadas, no mínimo”, decretava o estatuto da Marinha na época.
A maioria da força de trabalho sem grande patente era formada por negros, que se rebelavam em segredo contra esse tipo de punição há algum tempo. Uma rebelião foi sendo articulada pelo marinheiro João Cândido Felisberto  (“Almirante Negro”), que culminou com A Revolta das Chibatas, movimento relatado pelo jornalista e escritor paulista Fernando Granato, em seu recém-lançado livro João Cãndido - Retratos do Brasil Negro. A Revolta tornou-se um marco na história de nossa juvenil República, e o relato dos acontecimentos, embora várias obras, estudos e teses tenham sido escritos, ainda é cercado de estranhamentos, seja por parte dos acadêmicos, seja por parte de alguns reservistas da Marinha.
Há muito tempo nas águas da Guanabara/O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro/A quem a história não esqueceu
Conhecido como o almirante negro/Tinha a dignidade de um mestre sala.

O fato é que há quase cem anos, na noite de 22 de novembro de 1910, a punição ao marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes foi o estopim para o movimento. Depois de ferir um oficial a bordo do encouraçado Minas Gerais (que o havia delatado por levar pinga para o navio), Menezes foi condenado a receber 250 chibatadas, que seriam aplicadas sob os indignados olhares da tropa. Era a gota d’agua. Os marinheiros assumiram o controle do Minas Gerais, mataram quatro oficiais (incluindo Batista das Neves, o comandante do navio), juntaram-se na Baia da Guanabara a outras embarcações, e enviaram um manifesto ao presidente da República (Hermes da Fonseca). Escreveu João Cândido na carta: “O governo tem que acabar com os castigos corporais, melhorar nossa comida e dar anistia a todos os revoltosos. Senão, a gente bombardeia a cidade dentro de 12 horas”. Surpreendido, o comando militar e o Congresso bateram cabeça, discutiram enfurecidos sobre qual posição deveria ser tomada, minimizaram o fato, rechaçaram uma negociação e chegaram a bombardear a “frota rebelde”. Os amotinados revidaram bombardeando as instalações na Ilha das Cobras e o Palácio do Catete (sede do Poder). Acuada, a Marinha iniciou as negociações com João Cândido e seus pares na manhã do dia 23.

E ao navegar pelo mar com seu bloco de fragatas / Foi saudado no porto pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por batalhões de mulatas/Rubras cascatas jorravam das costas dos negros pelas pontas das chibatas/Inundando o coração de toda tripulação/Que a exemplo do marinheiro gritava então.

No dia 26, o governo aceitou as reivindicações, abolindo os castigos físicos e anistiando os revoltosos, que baixaram as armas e se entregaram. Dois dias depois um grupo de marinheiros foi expulso da Marinha (“inconveniente à disciplina”), e outros foram presos na Ilha das Cobras. Em 4 de dezembro, ouve novo levante, mas os marinheiros já não tinham uma liderança, estavam apavorados e foram dizimados pelo bombardeio da marinha. Muitos dos rebelados morreram, outros foram detidos, entre eles João Candido, que foi preso em solitária, passou um período no manicômio (pior cárcere não havia na época), foi expulso da Marinha, sendo julgado posteriormente e absolvido em 1 de dezembro de 1912. Vagou a míngua pela vida, juntou-se ao movimento da Ação Integralista Brasileira em 1933, sonhou em voltar a Marinha, mas só conseguiu voltar para o Sul do país, onde nascera. Foi discriminado até os últimos dias, passou a viver em São João de Meriti (RJ) e morreu de câncer, pobre, esquecido e abandonado em 6 de dezembro de 1969, aos 89 anos de idade.
Glória aos piratas, às mulatas, às sereias/Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias/Que através da nossa história
Não esquecemos jamais/Salve o almirante negro
Que tem por monumento/As pedras pisadas do cais/Mas faz muito tempo…
A jornada pela redução da discriminação racial no Brasil está longe de terminar. Embora uma parte da sociedade negra tenha conseguido acesso aos bens de consumo e a titularidade acadêmica, a grande maioria ainda ostenta nas costas as marcas das “chibatadas sociais” do final do século XX, que são menos sangrentas, mas não menos dolorosas do que as do início. Quem se interessa pelo tema, e também por jornalismo, pode encontrar boa informação e debate na obra Imprensa Negra no Brasil do Século XIX, da historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto, lançada este mês em Brasília. Dividido em quatro capítulos, o livro apresenta um panorama dos jornais e revela a atuação de um razoável número de negros letrados capazes de gerar e absorver as ideias emitidas nos periódicos da época.
Um ano antes de morrer (1968), João Candido deu um depoimento ao Museu da Imagem e do Som, com perguntas feitas pelo historiador Helio Silva e Ricardo Cravo Albin, então diretor executivo do MIS. Disse ele: “Nada nos foi oferecido, nós impusemos, queremos isso e tem que se decidir por isso… A ideia nasceu dos próprios marinheiros para combater os maus-tratos e a má alimentação da Marinha e acabar definitivamente com a chibata… Eu tive o poder na organização da conspiração e estive determinado pelos comitês para assumir a direção da revolução com todos os poderes (…) Na organização da revolta, eu dispunha de todos os poderes, parei o Brasil. Durante seis dias eu parei o Brasil”.



Um comentário:

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